Se o arroz falasse…
Há dias, em
poucos minutos, sem fato de astronauta nem relógios esquisitos, viajei no
tempo, sem outra máquina que a fantástica, com a qual todos estamos mais ou
menos apetrechados: a memória.
Devia eu andar
pelos meus cinco pequenos e magros anitos. Manhã bem cedo para o campo, verão de
calores e vapores de aventura, que pelas 11 da matina já o granito não deixa a
gente andar descalços e as batatas, arrancadas à terra, rapidamente cozem ao
sol.
Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado) |
Corri o regato
que persistia ainda, da nascente natural, como um fio que emagrecia a cada dia
de Estio. Vi os girinos que, cada vez mais próximos do poço onde culminava o
regato, mostravam toda a sua aproximação a rãs com cauda. Subi a todas as árvores que consegui. Olhei as flores silvestres como se elas me beijassem e me
anunciassem futuros amores e beijos de seda. As papoilas gritavam como sereias.
As dedaleiras davam o seu pólen aos abelhões. Os pássaros desafiavam-se em odes
à vida, banhada pelo sol, orvalhada pela noite.
Se isto não era
o paraíso, pelo menos ganhava, aos pontos, às descrições inflamadas de qualquer
inferno. Pobre diabo, o Mafarrico.
Regressei a
casa. Pelo caminho ainda apanhei os pinhões, debaixo das copas redondas dos
pinheiros mansos. Que árvores belas são os pinheiros mansos, e que delícia
comer os pinhões. Suporta-se até o risco de um dedo com a unha preta, pelo
descuido da pancada pouco acertada, com a pedra, para abri-los.
Chegado a casa,
minha mãe fez arroz. Arroz de arroz, mesmo. Minha mãe ainda faz arroz com um
gosto… deve saber a arroz de mãe, penso eu. Um pouco de tomate, azeite, cebola
refogada… sei lá. Tento sempre, mas nunca é bem aquilo.
A cozinha, na
altura era grande, a meus olhos de pequenos cinco anitos. Já foi ampliada para
mais do dobro e ainda hoje é pequena. O chão era de cimento. Muito liso,
brilhante.
No fogão, o
arroz cheirava a arroz feito pela minha mãe. Fora, as cigarras trinavam as suas
guitarras. Acho que o faziam regaladas com o cheirinho do arroz acabado de
fazer.
Minha mãe pegou
no tacho para o colocar em cima da mesa. Visto em câmara lenta e a salivar de
vontade de o provar, vi uma das asas do tacho desprender-se do tacho, como se o
tacho fugisse dela e se quisesse, enciumado, atirar ao chão, por birra. E não é
que atirou mesmo!
Minha mãe soltou
um daqueles raros palavrões, que tomam outra vida com sotaque Beirão Serrano,
foi buscar uma colher grande e apanhou até ao último grão, para o tacho, ferido
no orgulho, novamente cheio, e agora amputado de uma asa.
Comemos que
regalou. Alguns devem recordar-se que o arroz não era branco branqueado e sem
graça como o de hoje. O arroz tinha, amiúde, uns risquinhos avermelhados…
vestígios de casca. Que delícia. Não sobrou arroz. Até um pouco de arroz
esturrado, que o tacho não tinha conseguido rejeitar, marchou. Gosto do arroz
quando esturra, é como a intensidade dos sentimentos… é até queimar.
Esse tacho,
maroto e traidor, condenámo-lo, “ipso
facto”, a ser reservatório da comida do cão, sem que isso tenha sido a sua
única pena. Em cumulo jurídico, o destino votou-o a lixo sem glória.
Num dia de
entrudo, de uns anos mais tarde, farrusco, frio e aspergido por farrapos de neve,
estando a aquecer-me à lareira da mesma grande e hoje minúscula cozinha, minha
mãe convocou-me para levar uns restos de comida ao canito, no condenado tacho
sem asa. Levantei-me e, uma tontura, por provável hipotensão ortostática,
estatelei-me em cima do condenado, espalmei-o e saí ileso. Pequeno, mas rijo.
Se fosse agora ainda podia seguir o caminho da reciclagem (o tacho). Naquele
tempo foi dado à terra que o deve, ainda, andar a mastigar.
Regressei na
máquina do tempo, de um tempo em que ainda só existia o Paraíso e eu era eu e a
terra misturada nos pés nus e descalços. Aterrei na minha vida, a lembrar um
belíssimo texto de José Rodrigues Migueis, Arroz
do Céu. E pensei: Ai se o arroz falasse.