quinta-feira, 16 de julho de 2020


Se o arroz falasse…

Há dias, em poucos minutos, sem fato de astronauta nem relógios esquisitos, viajei no tempo, sem outra máquina que a fantástica, com a qual todos estamos mais ou menos apetrechados: a memória.
Devia eu andar pelos meus cinco pequenos e magros anitos. Manhã bem cedo para o campo, verão de calores e vapores de aventura, que pelas 11 da matina já o granito não deixa a gente andar descalços e as batatas, arrancadas à terra, rapidamente cozem ao sol.
Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado)
Corri o regato que persistia ainda, da nascente natural, como um fio que emagrecia a cada dia de Estio. Vi os girinos que, cada vez mais próximos do poço onde culminava o regato, mostravam toda a sua aproximação a rãs com cauda. Subi a todas as árvores que consegui. Olhei as flores silvestres como se elas me beijassem e me anunciassem futuros amores e beijos de seda. As papoilas gritavam como sereias. As dedaleiras davam o seu pólen aos abelhões. Os pássaros desafiavam-se em odes à vida, banhada pelo sol, orvalhada pela noite.
Se isto não era o paraíso, pelo menos ganhava, aos pontos, às descrições inflamadas de qualquer inferno. Pobre diabo, o Mafarrico.
Regressei a casa. Pelo caminho ainda apanhei os pinhões, debaixo das copas redondas dos pinheiros mansos. Que árvores belas são os pinheiros mansos, e que delícia comer os pinhões. Suporta-se até o risco de um dedo com a unha preta, pelo descuido da pancada pouco acertada, com a pedra, para abri-los.
Chegado a casa, minha mãe fez arroz. Arroz de arroz, mesmo. Minha mãe ainda faz arroz com um gosto… deve saber a arroz de mãe, penso eu. Um pouco de tomate, azeite, cebola refogada… sei lá. Tento sempre, mas nunca é bem aquilo.
A cozinha, na altura era grande, a meus olhos de pequenos cinco anitos. Já foi ampliada para mais do dobro e ainda hoje é pequena. O chão era de cimento. Muito liso, brilhante.
No fogão, o arroz cheirava a arroz feito pela minha mãe. Fora, as cigarras trinavam as suas guitarras. Acho que o faziam regaladas com o cheirinho do arroz acabado de fazer.
Minha mãe pegou no tacho para o colocar em cima da mesa. Visto em câmara lenta e a salivar de vontade de o provar, vi uma das asas do tacho desprender-se do tacho, como se o tacho fugisse dela e se quisesse, enciumado, atirar ao chão, por birra. E não é que atirou mesmo!
Minha mãe soltou um daqueles raros palavrões, que tomam outra vida com sotaque Beirão Serrano, foi buscar uma colher grande e apanhou até ao último grão, para o tacho, ferido no orgulho, novamente cheio, e agora amputado de uma asa.
Comemos que regalou. Alguns devem recordar-se que o arroz não era branco branqueado e sem graça como o de hoje. O arroz tinha, amiúde, uns risquinhos avermelhados… vestígios de casca. Que delícia. Não sobrou arroz. Até um pouco de arroz esturrado, que o tacho não tinha conseguido rejeitar, marchou. Gosto do arroz quando esturra, é como a intensidade dos sentimentos… é até queimar.
Esse tacho, maroto e traidor, condenámo-lo, “ipso facto”, a ser reservatório da comida do cão, sem que isso tenha sido a sua única pena. Em cumulo jurídico, o destino votou-o a lixo sem glória.
Num dia de entrudo, de uns anos mais tarde, farrusco, frio e aspergido por farrapos de neve, estando a aquecer-me à lareira da mesma grande e hoje minúscula cozinha, minha mãe convocou-me para levar uns restos de comida ao canito, no condenado tacho sem asa. Levantei-me e, uma tontura, por provável hipotensão ortostática, estatelei-me em cima do condenado, espalmei-o e saí ileso. Pequeno, mas rijo. Se fosse agora ainda podia seguir o caminho da reciclagem (o tacho). Naquele tempo foi dado à terra que o deve, ainda, andar a mastigar.
Regressei na máquina do tempo, de um tempo em que ainda só existia o Paraíso e eu era eu e a terra misturada nos pés nus e descalços. Aterrei na minha vida, a lembrar um belíssimo texto de José Rodrigues Migueis, Arroz do Céu. E pensei: Ai se o arroz falasse.

  Pimenta no cu dos outros… (Série)   Inspirado num poste sobre espera. A vida, se a observarmos, de todos os lados, e a conseguirmos ...