quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

 

É Natal.

 

É natal, o mundo apodrece, mas ao que parece não cheira mal.

Enfeitei uma árvore com muitas bolinhas, redondas, branquinhas, de naftalina.

É bonito, é fino, e assim, o cheiro, disfarça a malina.

 

Decoram-se as ruas com mil pobrezinhos, de todas as cores, bem desgraçadinhos.

De mãos estendidas, caídos de si, carpindo estertores, em mil coreografias,

rendendo graças, vestindo horrores, aos ricos bonzinhos.

 

É natal e eu faço um presépio.

Façam-me o obséquio, não lhe chamem curral!

Ponho nele um menino,

bem pequerruchinho, contente e meiguinho.

Parece normal…

Assim, pequenino, posso torcer-lhe o pepino,

já pouco importa que ele seja divino.

 

É a festa do pai natal,

da Popota, do burrinho, da vaca

e do raio que os parta.

É dia do senhor que nasceu nas palhinhas,

E que se destina a findar muito mal!

Mas deixem lá…. Afinal é natal…

                                                  Poesia de Bigorna

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

 

Inimputáveis

 

Várias têm sido as notícias que nos vêm dando conta de uma tremenda matança, selvagem, de animais silvestres, algures às portas da “capital do império”.

Algumas dessas notícias faziam referência a uma actividade de caça. A mim pareceu-me uma actividade que envergonharia o mais frio dos magarefes. E, ainda assim, não vi muitos caçadores nem contentes nem tristes a distanciarem-se deste acto desmedido e encarniçado. Que grande vontade de matar. Diz-se que foram 540 animais, entre javalis e cervídeos, numa herdade murada. Presumo que os animais não fugiram porque não lhes deu vontade.

Não sou contra a morte de animais. O ser humano tem que matar para não morrer. Se não matar animais terá que matar plantas, que pedras ainda me parece difícil comer.

A caça nasceu com o homem como forma de se sustentar, tal como outros animais o fazem, quer corram atrás de outros animais, quer apanhem as quietas plantas. Com uma grande e nobilíssima diferença. Apenas o necessário à satisfação do momento, num estrito compromisso de amanhã haverá amanhã.

Ali, a satisfação foi a morte. Foi uma nítida antecipação do dia dos santos inocentes.

Alguns falam de possíveis crimes, outros de crimes éticos, outros de crimes contra a natureza.

É provável que sim, que possa ser encontrada matéria para imputação de crimes. O que não me parece é que haja a quem os imputar. Da forma como vi a manifestação da Vã Glória de matar, por parte dos tais monteiros, não imagino maneira ou forma de lhe assacar responsabilidade.

Como sabe quem me conhece, desde há muito que venho dizendo: Só tem Culpa quem pode…

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

 “O que é um peido pra quem tá cagado?”


Senhoras e Senhores passageiros deste destino inexorável. Um sorriso fica-nos sempre bem, acreditem, ainda a procissão vai no adro, ainda falta estoirar muito foguetório e, tal como expressa a Extensão de Gattuso À Lei de Murphy: “Nada é tão mau que não possa piorar”.

Haveria eu os meus tenros ignorantes e longínquos 25 anos, na altura a frequentar o último ano do curso, na Sábia e Altiva Lusatenas, e senti “claramente sentido”, o sentido que tem o turbilhão da ira dos deuses mais brincalhões.

Eram quase nove da madrugada, acordei, de boca seca e dor na mona (tinha-me atulhado de estudos na noite anterior…), atrasado de tempo e de vontades.

A custo desenvencilhei-me dos lençóis, que tudo faziam para contrariar o meu ímpeto de assistir às aulas (eles lá teriam as suas razões). Corri para o chuveiro, reguei-me com água por dentro e por fora, com água que teimou em chegar-me fria a todo o lado. Ensaboei-me apressado. Abri novamente a torneira que, em vez de cuspir água para fora, fez um desesperante glu, glu, aspirando os últimos pingos para dentro, anunciando que tinha feito greve ao meu banho.

O meu quarto era num saudoso 4º andar, aquecido, ternamente, por três, abaixo, de lindas estudantes. Enrolei-me na toalha, dirigi-me, ensaboado, enregelado e envergonhado do meu fraco porte atlético, ao elevador, para aproveitar a lei da gravidade da água que esperava encontrar num chuveiro da cave (era o último ano e já conhecia as sebentas quase todas).

O elevador, servil e manhoso, fez questão de parar no terceiro, no segundo, no primeiro (sempre para entrarem belas moças que mostraram bem, com o olhar, o que pensavam do meu aspecto e da minha fraca figura), e quedou-se, caprichoso mudo e mole, entre o primeiro andar e o R/C, avariado e avariando –me os nervos. Bonito serviço! Que a estupidez nunca falte ao meu colega que desabafou, sem pudores de sabedoria: - “Ainda bem que a luz está acesa, é que eu sofro de claustrofobia…”.

A primeira aula já tinha ardido e eu já espirrava de frio, quando o elevador retomou a marcha para o R/C e depois para a cave.

Livrei-me do sabão com uma minúscula quantidade de água que desceu por um fio fino, do chuveiro até mim, sequei-me, enrolei-me na toalha, tremeliquento de frio e de raiva e subi, no elevador, desafiando-o em voz alta, para que as colegas e os colegas que comigo viajavam, em abundância rara, percebessem que eu não parecia só esquisito, estava mesmo doido varrido.

Vesti-me. Quando voltei a passar pelos chuveiros senti correr água, fui fechar a torneira e verifiquei, com agrado de lágrimas, que já tinha voltado a água ao 4º andar. Porra!

Voltei a desafiar o elevador. Como já levava um ar decente, minimamente, apenas entrou uma colega, das que eu menos gostava, e das menos bonitas, e a viajem foi rápida.

Saí para o exterior da residência, pelas traseiras, por uma escadaria que dava acesso rápido às aulas. Mal tinha posto o pé nas escadas e já o S. Pedro, que devia estar mesmo à espreita, descarregava toda a água que podia, numa chuva grossa e furiosa.

Quando cheguei ao átrio das salas de aula estava mais molhado do que em qualquer momento do banho matinal. Parecia um guarda-chuva fechado.

Constatei, num misto de ira e de alívio, que não estava atrasado para a segunda aula, mas esta não se iria realizar por falta do professor. Irra!

Decidi ir tomar um café, para acalmar as dores de cabeça, dos excessos “estudiosos” da véspera.

Desci as escadas do edifício, para me dirigir a uma tasquinha, em frente, que chamávamos de, nunca percebi bem porquê, “Porcalhota”. Não cheguei lá. Consegui enfiar um pé, quase até ao joelho, numa enorme poça de água, que o S. pedro enchera, a propósito, e à medida…

Decidi que o dia não iria continuar assim. Dirigi-me para o meu 4º andar, pela escada (não fosse o elevador estar de conluio com as horas más da existência), e deitei-me. A cama era baixinha, o trambolhão, se acontecesse, não seria certamente grande.

 

Há poucos dias atrás, enquanto sorvia um café, acompanhado de duas colegas de trabalho, numa curta pausa de trabalho, junto ao canal da Ria de Aveiro, esbocei um sorriso, só para mim, ao recordar este episódio. Este sorriso não chegou a todo o rosto e não tive tempo de partilhar o seu motivo. Passou uma gaivota, ou desarranjada dos intestinos ou telecomandada por alguém dos céus, e cagou-me, literalmente, em cima.

E sim, foi mesmo para mim. Não correu mal, escapou o chapéu, no qual faço prosa, a mesa, e também, ilesas, as minhas colegas.

Voltei para o serviço com uma só interrogação:

- Qual será o verdadeiro significado de Annus, na expressão “Annus Horribilis”?

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

 

Boa Saturnália!

 

Escultura Saturnalia de Ernesto Biondi (Jardim Botânico de Buenos Aires)

Está a chegar esse festival a que Catulo chamava de “o melhor dos dias” e durante o qual as normas e leis Romanas eram suspensas ou podiam não ser observadas.

Nada mais parecido com as excepções natalícias aos rigores do confinamento.

Espero que o Corona Vírus esteja desatento e tudo corra bem.

Afinal Festa é Festa...


domingo, 13 de dezembro de 2020

 

As Vacinas e os Profissionais na Saúde

 

Fui-me habituando a constatar que os profissionais de saúde, não são, por norma, fáceis de tratar, nas suas mazelas físicas e espirituais, e também não são dos que mais aderem a medidas preventivas, no que à sua saúde concerne.

Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado)
Não só parecem pouco crentes nos tratamentos, como ainda descuram a preservação da saúde, ou vivem a tremer de coragem quando são convidados a provar os remédios que recomendam.

Um dos campos onde esta realidade é bastante evidente é a vacinação.

Nunca nos distanciamos muito de uma mísera adesão de metade dos profissionais (sem variações significativas para as diferentes classes), e isto tendo em conta que para os mesmos existe disponibilidade para se vacinarem 100%.

Alguns, por altruísmo, outros por medo anunciado, outros por medo escondido, outros por valentia e por considerarem o seu sistema imunitário à prova de qualquer “perdigoto”, mesmo dos mais ranhosos, facto é que as vacinas não lhe “entram”. Acho que alguns aproveitam, apenas, para “virar o bico ao prego”.

Tudo parece bem quando acaba bem. Mas nem sempre será, exactamente assim. Estamos a tornar-nos um sector que emprega a mesma gente envelhecida que tenta tratar. O envelhecimento é tão transversal aos profissionais da saúde quanto à população em geral, e a morte e a doença, tirando algumas diferenças que a assimetria do conhecimento e dos recursos acentuam, também não desviam muito a esta transversalidade.

Gosto de pensar bem dos meus colegas. Acreditem que é verdade. Somos massa de padeiros semelhantes e, se o levedar não estragar demasiado o pão, lá teremos defeitos e virtudes semelhantes.

Gosto, inclusivamente, de pensar que me posso enganar, que tenho dúvidas e que os outros também. Até gosto de um pensamento que se atribui (e fico na dúvida se a Charles Chaplin se a Che Guevara): “Gosto dos meus erros, não quero prescindir da liberdade deliciosa de me enganar.”

Por estes motivos, gostava de propor uma reflexão mais flexível, numa quimera mais solidária, mais orientada para o bem comum.

Muitos profissionais manifestam a sua vontade de adiar a sua adesão à nova vacina para a Covid-19, alegando que a mesma pode não estar ainda devidamente testada. Pois parece me insensato. Ou será avisado, mais do que eu sei! Breeeee que meeedo….

Raciocinemos: grande parte das pessoas que estuda, testa, produz e avalia o efeito das vacinas são profissionais da área da saúde. Será por os conhecermos tão bem, e os acharmos parecidos connosco, que tememos a fineza do seu trabalho? Certamente que não!

Será que as grandes empresas farmacêuticas, que produzem vacinas como outros medicamentos e o fazem com o mesmo zelo e vontade com que os bancos “apalpam e mimam” as notas mais valiosas, estarão na disposição de falhar e “aniquilar” a galinha dos ovos de oiro? Certamente que não!

Se as vacinas resultarem, a prosperidade voltará; poderemos voltar a destapar os nossos cansados “focinhos” (destes fastidiosos farrapos), poderemos voltar a abraçar-nos de costelas e peitos famintos de pele. Vá lá. É que isto, se resultar, só resulta se formos muitos, e muitos a mostrar que vale a pena tentar.

Medo que tenha efeitos indesejáveis. Certamente que terá. Ontem comi feijão e brócolos, não esperava que me causassem flatulência… Mas tem sido difícil… ai tem…

Medo? Medo deveremos ter da doença e dos seus efeitos imprevisíveis e das suas sequelas.

Medo? Medo devo ter de transmitir a doença aos meus mais significativos ou aos mais significativos de alguém.

Medo! Medo deviam ter os que se ofereceram para os testes da primeira etapa… Medo!? Medo devem sentir os doentes quando os convidamos a cooperar com os nossos alunos que vão executar técnicas, NELES, que nunca fizeram noutros… Medo!?

Um pouco de solidariedade impõe-se.

Eu, por mim, logo que possa ter um frasco de vacinas, vou sentar-me, desnudar uma porção, estritamente necessária do meu deltoide, e vou, a tremer de coragem, auto-administrar-me a primeira dose.

Depois, espero não adoecer com covid, espero não transmitir covid, espero que aconteça isto aos milhares de milhões, e espero, espero mesmo, aguardar serenamente a morte, que um dia será tão certa como já ter cometido erros e ter-me enganado.

Não quero e não posso colonizar o teu cérebro com as minhas ideias. Quero apenas ter a certeza que pensas sobre o assunto, e que, na tua enorme generosidade, seja contigo, seja com os outros ou com os dois, se encontrares uma razão verdadeiramente válida para não nos vacinarmos, que a partilhes urgentemente connosco.

                (Escrito sob um céu de quase Inverno, nas margens do quieto e quase morto Cértima, em completo desacordo com acordo vigente) Bigorna, 2020

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Que hora é esta?!?

 

O Jaquim, da minha terra, confessou-me andar um pouco sem saber das horas. Mais do que isso, lamentava-se ele, entre um trago de cachaça e um cofiar das barbas argênteas:

Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado)
- Sabes Bigorna… sinto-me estuprado no cérebro…

E lá me contou ele, com os cantos da boca para baixo e os sobrolhos enrugados como
papel que se lança ao lixo:

- Primeiro vieram uns, lá das vacinas do vírus da Covid, dizer que a eficácia da sua poção mágica era de 90%. Depois, vieram outros e logo se apressaram a dizer que a deles era melhor, e mais isto, e mais aquilo, e que chegava aos 95%.

- E isso não são boas notícias Jaquim? – Perguntei-lhe eu encavacado.

- Talvez, se isso não tivesse feito com que os primeiros emendassem a mão, para dizerem que a sua vacina também preveniria 95% das infecções. Assim, como quem tira um gato de dentro de uma cartola. Sim, que já se vê que aqui anda gato escondido com o rabo de fora.

E como se não bastasse, Bigorna, veio um terceiro feiticeiro, que tinha anunciado uns míseros 70% de eficácia, e diz que se enganou a testar a poção mágica, e que depois de mais uma colher bem cheia do postemeiro, a eficácia se levantava para os 90%. Espero que tenha explicado isso às cobaias.

- Pois. Até dá vontade de Orar. Ora merda para isto tudo! Perdoa-me lá Jaquim, a veemência da minha oração… Não tarda, se algum se arvora em ter eficácia de 100%, LOGO OUTROS VIRÃO DIZER QUE A VACINA DELES CURA TUDO… E TUDO E TUDO… E pena será que não cure a intrujice e a mentira e a avareza e… e a injustiça e a fome e falta que faz a poesia…

- É disso que te estou a falar, Bigorna. Até me sinto fora do tempo e a recordar aquela vez em que me cruzei com a Maria Xarope de Giesta, quando ela vinha das terras (de cavar, mondar, regar e chorar), e eu lhe perguntei se ela tinha horas.

- E então, Jaquim, que te respondeu ela?

- Disse-me, na sua simplicidade do tamanho do mundo: “Não tenho relógio Jaquim, costumo ouvir o sino da torre, e parece, parece, Jaquim, que me deram duas, ali atrás da mata.”

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Tanta pressa… 


Ilustração de Danielle-Mae. Obrigado.
Gosto das pessoas que se detêm, a olhar para os pequenos pormenores, como se elas próprias os quisessem tornar seus.


Não gosto da voragem das legendas dos filmes. Sou lento, não nasci no lado inteligente da família e, quando não consigo ler, deixo de entender a história. 
Acabo por desistir de ver o filme ou, tal como na vida, quando as pessoas vão demasiado rápido, acabo por não as conseguir saborear, perco-lhes o interesse, ficam apenas cenas de filme, com ou sem cor, com ou sem acção, com ou sem sal, apenas cenas de filme.

 Há poucos dias, no vagar de que gosto, em tempo de férias e enquanto o vírus corria atrás das pessoas e as pessoas atrás de notícias dele, fiz uma visita guiada ao magnífico Museu Ferroviário, em Entroncamento. Fica a recomendação e a nota do que me fascinou e facilitou na visita, pessoal apaixonado pela lenta história da evolução da ferrovia. Obrigado.

Entre muitas e muitas histórias que fomos ouvindo e partilhando, entre as curiosidades da evolução tecnológica e outras, a viagem terminou com a apresentação de um pequeno vídeo que se iniciava à velocidade das primeiras locomotivas a vapor, e terminava à velocidade inimaginável dos comboios que levitam nas linhas sob influência de campos magnéticos, a 600 quilómetros por hora. Até as datas e as legendas corriam mais do que os meus neurónios podiam ler.

Foi durante esse espanto, esse instante rápido, quiçá, pela sua rapidez, “que meus nervos se enervaram” e me veio à memória uma estória contada por um vetusto contador de estórias.

Por ter, quase certo, fundo de verdade, e por ter contexto geográfico concreto, vou omitir esse contexto e pensar que podia ter acontecido no teu próprio lugarejo, algures no polo mais a sul das sextas-feiras das nossas vidas, onde o tempo não conta, onde a pressa é só de continuar a existir e a conhecer coisas belas.

Num tempo em que nas aldeias, as bicicletas, sendo uma raridade, constituíam motivo de ir ao largo do coreto para vê-las passar, um certo remediado homem encomendou uma bicicleta para o filho: 

- Pode ser de cor preta, mas não assim muito preta, um preto que seja clarinho…

Chegada a bicicleta à aldeia, logo o rapaz se jungiu nela e foi dar seu passeio. Quando ao fim do dia voltou para casa, o pai, que o esperava ansioso, perguntou-lhe:

 - Então filho, gostaste de andar de bicicleta? 

- Assim assim, senhor meu pai… - Respondeu-lhe, algo desiludido o filho. – A gente vai, meu pai, por esse mundo que deus tem, a passear, e a modos que se vê tudo muito depressa…

quinta-feira, 16 de julho de 2020


Se o arroz falasse…

Há dias, em poucos minutos, sem fato de astronauta nem relógios esquisitos, viajei no tempo, sem outra máquina que a fantástica, com a qual todos estamos mais ou menos apetrechados: a memória.
Devia eu andar pelos meus cinco pequenos e magros anitos. Manhã bem cedo para o campo, verão de calores e vapores de aventura, que pelas 11 da matina já o granito não deixa a gente andar descalços e as batatas, arrancadas à terra, rapidamente cozem ao sol.
Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado)
Corri o regato que persistia ainda, da nascente natural, como um fio que emagrecia a cada dia de Estio. Vi os girinos que, cada vez mais próximos do poço onde culminava o regato, mostravam toda a sua aproximação a rãs com cauda. Subi a todas as árvores que consegui. Olhei as flores silvestres como se elas me beijassem e me anunciassem futuros amores e beijos de seda. As papoilas gritavam como sereias. As dedaleiras davam o seu pólen aos abelhões. Os pássaros desafiavam-se em odes à vida, banhada pelo sol, orvalhada pela noite.
Se isto não era o paraíso, pelo menos ganhava, aos pontos, às descrições inflamadas de qualquer inferno. Pobre diabo, o Mafarrico.
Regressei a casa. Pelo caminho ainda apanhei os pinhões, debaixo das copas redondas dos pinheiros mansos. Que árvores belas são os pinheiros mansos, e que delícia comer os pinhões. Suporta-se até o risco de um dedo com a unha preta, pelo descuido da pancada pouco acertada, com a pedra, para abri-los.
Chegado a casa, minha mãe fez arroz. Arroz de arroz, mesmo. Minha mãe ainda faz arroz com um gosto… deve saber a arroz de mãe, penso eu. Um pouco de tomate, azeite, cebola refogada… sei lá. Tento sempre, mas nunca é bem aquilo.
A cozinha, na altura era grande, a meus olhos de pequenos cinco anitos. Já foi ampliada para mais do dobro e ainda hoje é pequena. O chão era de cimento. Muito liso, brilhante.
No fogão, o arroz cheirava a arroz feito pela minha mãe. Fora, as cigarras trinavam as suas guitarras. Acho que o faziam regaladas com o cheirinho do arroz acabado de fazer.
Minha mãe pegou no tacho para o colocar em cima da mesa. Visto em câmara lenta e a salivar de vontade de o provar, vi uma das asas do tacho desprender-se do tacho, como se o tacho fugisse dela e se quisesse, enciumado, atirar ao chão, por birra. E não é que atirou mesmo!
Minha mãe soltou um daqueles raros palavrões, que tomam outra vida com sotaque Beirão Serrano, foi buscar uma colher grande e apanhou até ao último grão, para o tacho, ferido no orgulho, novamente cheio, e agora amputado de uma asa.
Comemos que regalou. Alguns devem recordar-se que o arroz não era branco branqueado e sem graça como o de hoje. O arroz tinha, amiúde, uns risquinhos avermelhados… vestígios de casca. Que delícia. Não sobrou arroz. Até um pouco de arroz esturrado, que o tacho não tinha conseguido rejeitar, marchou. Gosto do arroz quando esturra, é como a intensidade dos sentimentos… é até queimar.
Esse tacho, maroto e traidor, condenámo-lo, “ipso facto”, a ser reservatório da comida do cão, sem que isso tenha sido a sua única pena. Em cumulo jurídico, o destino votou-o a lixo sem glória.
Num dia de entrudo, de uns anos mais tarde, farrusco, frio e aspergido por farrapos de neve, estando a aquecer-me à lareira da mesma grande e hoje minúscula cozinha, minha mãe convocou-me para levar uns restos de comida ao canito, no condenado tacho sem asa. Levantei-me e, uma tontura, por provável hipotensão ortostática, estatelei-me em cima do condenado, espalmei-o e saí ileso. Pequeno, mas rijo. Se fosse agora ainda podia seguir o caminho da reciclagem (o tacho). Naquele tempo foi dado à terra que o deve, ainda, andar a mastigar.
Regressei na máquina do tempo, de um tempo em que ainda só existia o Paraíso e eu era eu e a terra misturada nos pés nus e descalços. Aterrei na minha vida, a lembrar um belíssimo texto de José Rodrigues Migueis, Arroz do Céu. E pensei: Ai se o arroz falasse.

segunda-feira, 29 de junho de 2020


Plataforma de Acoplagem Intergeracional


Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado)
Há marcas que nos marcam de e para sempre. Uma dessas marcas é o umbigo, esquecido, no meio da pança ou na planura de uma barriga virgem e ávida de mimo. Uma depressão de modelo tão variável que pode mesmo apresentar-se como um vale invertido. Modelos variados, quase comparável a um dermatóglifo.
Muitas vezes depreciado, muitas vezes alvo de julgamentos egoístas e de índole egocentrista, não escapa a expressões como: - “vives a olhar para o teu umbigo”; - “tens um umbigo muito grande”.
Engraçado, poderíamos dar-lhe um valor mais introspectivo. Por ali entrou o nosso sustento, a nossa garantia de vida, durante nove meses (na maioria de todos nós). Por ali saiu, também, a informação para o corpo de nossas mães: - continua a segurar-me aqui dentro, ainda não sou capaz sozinho e lá fora, onde o mundo é duro, frio e cheio de ar.
Olhamos para o nosso umbigo, com ar de culpa e remorso, talvez por falta de sermos solidários e não por falta de o vermos como uma das maiores provas de solidariedade. Olhamos para esta cicatriz, indelével e ancestral e não lhe damos um ar leve, moderno, desempoeirado, de “Plataforma de Acoplagem Intergeracional”.
Agregados a uma nave Mãe, com a qual viajamos no tempo e no espaço, algures num universo de intimidades, nascemos acoplados por essa plataforma, por onde se trocaram nutrientes e informações químicas (e outras desconhecidas ou inimagináveis preciosidades). E, aquilo que nos ocorre é desdenhar de tão gostosa marca de união e continuidade, em vez de a mimarmos como se fosse a porta do buraco negro do nosso verdadeiro universo interior.
Talvez, alguns, mais cibernéticos, invejosos da capacidade que outros têm de serem felizes, preferissem nascer com uma ficha USB ao invés de um misterioso umbigo de pele. E até seria mais fácil controlar a vida dos outros. Não haveria protecção de dados que nos salvasse. Bastava ligar ao PC e todas as fomes e sedes, todas as emoções e desconsolos, apareceriam escarrapachados, num ecrã pasmado.
Fiquem de bem com os vossos umbigos e não tenham zelotipia de qualquer felicidade que seja.

quarta-feira, 24 de junho de 2020


Chupetas e Chupistas

Porquê escrever sobre chupetas?
E porque não?
Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado)

Estamos na era espacial, a lançar sondas para o futuro. Os nossos filhos são essas deliciosas sondas para o futuro. Parece-me importante que o façamos com o máximo cuidado. E não se trata, apenas, de os fazer bem feitos. Atenção aos acabamentos!
Todos temos alguma responsabilidade nisso e convém que tenhamos, disso, consciência.
Coisas tão simples, como algumas observações, lançadas quais dejecções ao vento, podem borrar a escrita toda, de crianças e dos seus, nossos próximos, em especial quando os próximos estão muito próximos.

Inúmeras são as vezes que me deparo com observações, a propósito do uso de chupeta, e que me fazem rasgar as vestes da indignação, tais como:

            - “Ainda usas chupeta!?”
            - “Não tens vergonha de usar chupeta!?”
            - “Que menino tão feio a usar chupeta…”
            - “Tem que lhe tirar a chupeta, mamã, vai estragar-lhe os dentinhos!!!”
            - “Fica tão feio… de chupeta”

E poderia ficar, aqui, a relatar os impropérios, diversos e multicoloridos, usados nestas circunstâncias. Não raro, estas barbaridades, terminam numa das mais sinceras e simples formas de nos perdoarmos e percebermos insatisfações.
 - “Olha, dás-me a tua chupeta?
Se eu fosse criança apetecia-me perguntar:
- Porquê (tadinho), não tens tostão para comprares uma para ti?

Recomendação simples. Se não tem nada de bom para dizer, fique calado.

É, por isto, que avento algumas hipóteses para o uso de chupeta. Talvez tendamos a usar ou abusar da chupeta por ela constituir uma compensação para a nossa ansiedade. Daí que (e fico feliz por perceber a presença de ansiedade nas pessoas), face a problemas difíceis de solver, as pessoas partam para a ignorância, ou para o raio que as parta. Este diálogo, inicialmente ofensivo e insultuoso, com os bebés, afinal, redunda num desesperado pedido de ajuda aos próprios bebés.
– Se o bebé nos desse, a sua chupeta, ficaríamos mais tranquilos, mesmo não conseguindo uma solução para o problema. Usávamos a chupeta e tudo passava.

Aparentemente, a solução de um problema tão complexo como o uso da chupeta, prolongado no tempo, perturbador da nossa imagem, estará no “não início” do seu uso. Isso significa que todo o problema estaria sanado, se nunca colocássemos uma chupeta na boca de um bebé. Mas a mesma facilidade, com que afirmamos tal solução, coincide e esbarra na mesma facilidade com a qual somos confrontados com opiniões em favor do seu uso (talvez pouco científicas ou a pedir ser teses de mestrados ou doutoramentos). Em chupetas?!, ainda se fora em Chupistas!!!
Porque estimulam a sucção, porque diminuem as cólicas, porque as fábricas as fabricam e as farmácias as vendem, porque são um presente fácil, porque acalmam os bebés, porque acalmam os pais, etc.

Assim sendo, enquanto não conseguirmos evitar o seu início de uso, se isso for conveniente e correcto, interessam-nos outras questões que julgo importantes, para a nossa intranquilidade, e sob pena de, para combate da nossa insatisfação, voltarmos todos a usar as chupetas que pedimos, encarecidamente, aos bebés que enxovalhamos a propósito do dito apêndice sugável.
Pela minha parte já tive a minha dose, fui fumador durante 15 longos anos… a ansiedade, não voltarei a curá-la, com chupetas.

Aquilo que gostaria de ver resolvido é o abandono de observações que apenas constrangem, as crianças, que usam chupeta, e os pais, que se veem a braços com um problema para o qual, inúmeras vezes, não veem como um problema ou não vislumbram maneira de ver resoluto.

Sabemos que, o uso de chupeta, remonta a épocas muito remotas e que mesmo antes disso, já os bebés colocariam o dedo nas boquitas gulosas (portas de entrada de muitas satisfações). Sabemos, até, que, os nossos antepassados improvisavam chupetas a partir de rolhas (vindo a constatar que os resíduos dos deliciosos néctares báquicos, que antes rolhavam, surtiam verdadeiros milagres sob o choro incomodativo dos bebés). Sabemos que o uso de açúcares e outras guloseimas também surtia efeitos semelhantes.
Mas será que, efectivamente, o uso do dedo na boca, por parte dos bebés, é motivo para o substituirmos, compulsivamente, por chupetas?
Retirando a questão da higiene, que ainda assim não sei se será maior nas chupetas ou, muito antes pelo contrário (uma vez que na pele existe uma flora saprófita que tende a controlar a patogénica), nos dedos, não me parece que o uso do dedo deva ser substituído pela borracha.
Para além das vantagens do dedo, em relação à borracha, ou do moderno e carcinogénico silicone, há ainda que contar com o próprio controlo de uso e desuso exercido pelo dono do dedo. O bebé usa, muitas vezes, os dois meios para controlar as suas necessidades, e faz isso a seu belo prazer. Não lhe amputem a liberdade deliciosa de usar o dedo!

Há também quem atribua, ao uso da chupeta, um nexo de causalidade com o insucesso da amamentação, argumentando que a dinâmica da sucção, quando na presença de chupetas e/ou tetinas, fica alterada e pode mesmo tornar-se ineficaz face ao mamilo materno. Tal poderá acontecer em alguns casos, nunca na maioria ou mesmo perto dela, visto que muitos bebés, que usam ou usaram chupetas e biberões e dedos, continuam adeptos incondicionais da mama. E de que forma!

Retirando a questão, do início ou não do uso da chupeta, que sabemos ser uma forma de solucionar a sua dependência futura, e que sabemos também não ser indispensável à tranquilidade dos bebés e dos pais, irão permanecem-nos os problemas dos que usando ou não chupeta vão usar ou abusar do uso dela, do dedo ou de ambos, até serem confrontados com as perguntas infantis, insultuosas, e sem resultados além do aumento da ansiedade de todos os intervenientes no problema.
O que fazer então?

Em primeiro lugar, há que considerar que, muito provavelmente (a carecer de comprovação por estudos científicos estatístico- manipuláveis ou estatístico-adulteráveis), o uso tardio de chupeta ou do dedo, bem como o seu abuso (entenda-se necessidade sem a qual a criança não dorme ou não deixa ninguém dormir ou permanece com ela grande parte do tempo ou possui já marcas evidentes de deformação da arcada dentária), tem por base a existência de outras perturbações do comportamento da criança, dos pais, do ambiente familiar, social, etc.
É, esta perturbação, que leva a comportamentos de compensação e de (in)segurança transferida para objectos, que deve, isso sim, merecer a nossa atenção. Resolvidas as perturbações do sono, da segurança ou da ansiedade, que rodeiam a criança ou a família, estaremos em condições de poder retirar ou não (pesando sempre o risco benefício), a chupeta (porque o dedo não tem solução tão fácil quanto a remoção ou afastamento). O dedo está sempre à mão (quem diria).
Há que definir, em parceria e diálogo com os pais e a criança, quando é que a chupeta está a ser uma perturbação com necessidades de solução e intervenção. Não me parece fácil que haja consensos para uma idade em que a criança deva ser afastada da chupeta que, muitas vezes, foi obrigada a usar.
Mas devemos, também, ter um papel de incentivo às atitudes firmes dos pais e mães que, desde o advento das intervenções psicoterapêuticas, vivem traumatizadas com a eminência do trauma do “obrigar as crianças”. Se as crianças podem ficar com traumas por terem sido “obrigadas”, então nada se faz para as obrigar a o que quer que seja. Acontece que, pouco se pensa e reflecte, sobre a existência do trauma da falta de regras e firmeza (que conferem segurança às crianças).
Será sempre importante estarmos atentos à substituição da chupeta por outras tendências repetitivas. E as piores podem ser aquelas que são vividas no silêncio e ocultação. Mesmo quando não existe o uso de chupetas ou dedos, podem existir comportamentos que evidenciem insegurança, ansiedade e/ou outros problemas. Tendemos a achar que o bonequinho ou a fralda, que a criança nunca abandona, são muito engraçados (desgraçados, desengraçados, e pútridos, alguns), mas devemos estar atentos ao porquê do seu uso. São, a miude, substituições.

Talvez, anos mais tarde, muitas destas dependências, sejam substituídas por alguns químicos de uso lícito ou não (com licença médica – vulgo receituário – ou não).
Estou convicto de que um aumento do aporte de pele, de carinho, de afecto e ternura, podem ser uma boa terapia para os bebés e crianças que sofrem de “chupetodependência” ou de outras dependências. Mas estou também convicto de que uma reflexão carinhosa, generosa, ternurenta, sobre as nossas abordagens às chupetas dos bebes e das mães dos bebés pode também ser muito útil.
E já agora, disse-me a ternura e a reflexão empenhadas, sobre o assunto, que não adianta intervir sem indicar caminhos e soluções.
Por favor, não diga:

            - “Ainda usas chupeta!?”
            - “Não tens vergonha de usar chupeta!?”
            - “Que menino tão feio a usar chupeta…”
            - “Tem que lhe tirar a chupeta, vai estragar-lhe os dentinhos!!!”

E se se sente triste, abandonado, ou abandonada, se necessitar compensar-se, não peça a chupeta, já usada, de um bebé.
Tenha coragem e compre qualquer coisa para resolver o problema.

Apenas mais uma nota.
Evite o uso desses cadeados que seguram as chupetas ao peito dos bebés, como se quisessem agrilhoar, para sempre, o coração dos bebés, a uma chupeta de borracha.
Longe da vista, longe do coração. Se a criança tem, sempre que percebe que o chão é duro, e que a luta com a gravidade é um longo caminho, uma chupeta para calar as suas frustrações, não vai haver afecto que salve a situação, nunca. Deixe chorar, as lágrimas são para lavar a alma…
Agora uma chupeta para acalmar, logo uma chupeta para dormir, amanhã um psicotrópico qualquer para acalmar a ansiedade…
E colinho… de pai e de mãe… se de boa qualidade e sem picos…. Aaahhh! É tão bom!

Se deixamos e incentivamos a chupar em chupetas, ainda vamos acabar por criar sondas, para o futuro, que não passarão de “Chupistas”.

sábado, 20 de junho de 2020


Fake News?

Hoje acordei com a falsidade como almofada e com o berço como fornicação. Senti-me traído, como se sempre o tivesse sido, como se nunca o tivesse sabido, como se fosse o último a saber.
As notícias deixam-me estuprado pela subtileza da falta de verdades.
Ontem morreu o primeiro médico, em Portugal, 68 anos (notícia triste), vítima de Covid-19.
Ontem, li parangonas, sobre o discurso do nosso Primeiro Ministro, a propósito da realização de finais de competições europeias, em Portugal, associadas a uma frase bombástica “São uma prenda para os profissionais de saúde”. Pela minha parte, pensei, vai-me ficar caro, ainda devo a conta das palmas que a populaça me bateu, sem eu ter pedido, e já estão a presentear-me novamente... Afinal o discurso estava descontextualizado. Que estranho!
Hoje acordei com a notícia de que o Twitter assinalou, pela primeira vez, uma notícia de trump, como “manipulação dos media”. Fiquei chocado. Nem estava à espera de que o sr. Trump manipulasse os media, nem de que o twitter assinalasse, assim, tamanha barbaridade.
Fui ver os números sobre Covid-19, pesquisa sapo, em Portugal, e verifiquei que há 38.464 pessoas infectadas e 1.527 mortos.
Disto resulta que 4% das infecções,na população, em geral, resultou em morte.
Verifiquei que há 3.681 profissionais de saúde infectados, dos quais 516 são médicos, 1.527 são enfermeiros (três vezes mais e em contraciclo com os restantes países do mundo, onde a lógica é de mais médicos infectados do que enfermeiros), ainda assim, e nas notícias, citados em segundo lugar, todos sabemos que no dicionário a letra “m” surge antes da letra “e” (nalgumas palavras), e mais 1.681 outros profissionais.
De outras mortes, de outros profissionais, nem pálida nota. Ainda bem que não morreu mais ninguém. No cemitério teria de haver placas a dizer “aqui jaz outro profissional”.
Mas voltando à notícia, da morte de um médico,esta poderia ser bombástica. Morreu um médico, de entre os 516 infectados. Também estou triste. A morte, sobretudo contrariada, essencialmente contrariado, chateia-me muito.
Acontece, porem,  que deve faltar aqui qualquer outro foco de atenção ou talvez alguns dados (não me passa pela ideia de que com qualquer intenção). Se a morte atingiu 4% dos infectados (na população, em geral) e apenas morreu 1 médico em 516, são 0,2% (na população de médicos). Morrem 20 vezes menos médicos (infectados), por Covid-19, do que cidadãos em geral. Gente rija, sem dúvida. Mas, se considerarmos que a notícia é correcta, ainda pode ser mais surpreendente. No total, se estão 3.681 profissionais infectados e faleceu 1, morreram 0,03% dos profissionais infectados. Os médicos deixam de ser gente tão rija, incomensuravelmente importantes, não reste dúvida, mas muito mais vulnerável do que a restante ralé.
Não me batam palmas, por favor, que ainda não paguei as anteriores.

Fuck News… era assim que eu pediria para renomear a coisa.

quarta-feira, 27 de maio de 2020


Eterno Retorno

Em 2009, em plena decorrência da pandemia Por H1N1 (Gripe A), escrevi este texto.
11 anos volvidos apeteceu-me desenterrar a esperança que sempre quis imortalizar nele.
Cada um de nós, na nossa inteira e deliciosa liberdade, até de estarmos errados, pode ler nele o que entender. Não vamos ficar, nem por aqui, nem sem retorno.

Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado)
Um “A” de “Amo a Vida”.

Ao lado da vala comum, de onde exalava um odor putrefacto, fazendo lembrar uma úlcera necrótica, serpenteava uma ribeira inocente, tranquila, de águas límpidas. Dela a vida irrompia sem preocupação alguma. Os dois sulcos, quase paralelos, separados apenas por umas dezenas de metros, competiam entre si, tentando cada um deles ser um rio a cada minuto maior, mais largo, mais caudaloso.
O inverno chegou. Na verdade, era como se a Primavera e o Verão se tivessem estreitado num fio fino que deu continuidade ao inverno seguinte engrossando-se no fim, sem que tivesse havido verdadeira transição. O mesmo se passava com a “malina”. E é particularmente distinto, este nome que o povo deu, desde sempre, ao mal, sobretudo quando ele é especialmente perigoso, enigmático e insidioso. Como se o facto de lhe dar um ar feminino lhe acentuasse a perfídia. Mas pérfida é a discriminação de género.
A “malina” também chegava, já depois de ter chegado, ia chegando. Assim, desta forma, colaterais, os dois rasgos cresciam, o regato e a vala comum. Um como rio de vida e o outro como rio de morte, uma cloaca de tristezas. Mas cresciam. E o que a um dava vida, isto é, a pluviosidade crescente, ao outro dava morte, corpos e corpos amontoados, encontrados aqui e ali, caídos, estropiados por cães vadios, por animais de toda a espécie, por larvas e minhocas… Corpos e mais corpos… Vítimas da gripe, da descurada pandemia…
Desde o início do ano que televisões, rádios, jornais e “sua alteza mais real e jovial”, a “net”, se pavoneavam de parangonas sobre a desejada pandemia. De início uns tantos casos de “Gripe dos Porcos”, no México. Depois o rápido aparecimento nos Estados Unidos da América e noutros países. E também, por consequência a mudança de nome. Talvez um mexicano possa sofrer de gripe dos porcos… Mas Um Yankee nunca e um Europeu… apenas se um Americano também não…
Os casos multiplicavam-se, umas vezes ao sabor dos media, outras ao sabor dos governos dos países e ainda outras ao sabor dos técnicos de saúde e das intermitências gananciosas das suas necessidades de protagonismo. Tudo ia concorrendo para que fosse mais fácil a sua propagação.
A minha cabeça doía, recordava, cogitava… Nos anos anteriores tinha havido falsos e desajeitados alarmes sobre hipotéticas gripes de aves, sobre pandemias mortais, sobre tragédias gregas e sobre antrax e pós brancos. A estas banais e insidiosas ameaças, mais ou menos bem orquestradas, mais ou menos verosímeis, sempre sob a égide cobarde de autoridades de saúde, seguiam-se especulações bem fundamentadas para tão frágil poder argumentativo da população mundial (mais ou menos bloguista, mais ou menos twitter, mais ou menos infantilizada e demencial).
Via os mortos que iam sendo atirados, com um som de corpo morto, sob os outros corpos mortos. E foi então que “tunc”, uma pancada de corpo morto atingiu o meu cadáver.
- O meu cadáver!!! – Exclamei.
E neste mesmo grito acordei do pesadelo. Os lençóis enrolaram-se-me ao corpo durante o terrível pesadelo… mal podia mexer-me…
Ofegante e com o coração a bater a mil, escutei as notícias... O despertador… A telefonia… anunciava a calma, a tranquilidade e a bonomia de mais um dia… Frio, é certo, mas com a população viva, vacinada e sobretudo bem informada.
E sim, pensei… é, é essa a melhor vacina contra todas as tiranias, pandemias e preconceitos – A informação.
Com este pensamento esfreguei os olhos e soltei o meu Ah!!! Matinal… Que, aqui para nós, é um “A” de “AMO A VIDA”.

segunda-feira, 18 de maio de 2020


Já ninguém tem medo do Bicho Papão…

Quando éramos pequeninos, aí para meados de Fevereiro deste ano, todos estávamos a começar de ter medo do Bicho Papão. Agora, 3 meses volvidos, já todos somos grandes, perdemos o medo e até a vergonha, quem a tinha.
Andámos arredios uns dos outros, com medo de matarmos uns quantos, sobretudo mais idosos e mais frágeis, com vergonha de ficarmos mal na fotografia, com muitos casos, muitas vagas nos lares de idosos, com o SNS a rebentar pelos fundilhos.
Agora, já não temos medo, devemos sair à rua, frequentar os restaurantes, comer sem máscara (pois  que com máscara não dá jeitinho algum). Estar num restaurante, sem máscara, já não é nada perigoso. Partículas e vírus em suspensão? Não! Noutros locais é perigoso, mas nos restaurantes não. Talvez seja por alguns terem tão má comida que nem o vírus resiste.
Nestes três meses o vírus bateu-nos o pé, mostrou quem mandava. Agora vai deixar-nos sair para a rua… ele vai estar a olhar-nos porque nós sabemos que é ele quem manda. É uma espécie de colega de escola, mais mauzão, que basta ameaçar-nos e ver a nossa cara, de acagaçados, para se sentir satisfeito e nos deixar em paz.
Em três meses, o que nós crescemos. Perdemos o medo, a vergonha… e passou tanto, mas tanto tempo que, parece-me, ou a senilidade se apoderou do nosso cérebro ou ensandecemos por falta de dinheiro.
Talvez corra bem…

segunda-feira, 11 de maio de 2020


Dia da Enfermeira

Comemora-se, Amanhã, 12 de Maio, o Dia Internacional do Enfermeiro.

Há uma pérfida tendência para o machismo, na nossa sociedade. Denominar dia do Enfermeiro, quando falamos de uma profissão maioritariamente no feminino, não me parece completamente inocente. Por mim, confesso que não me cairia nada por falar em dia da Enfermeira, contando que seja, sempre, com letra maiúscula.
Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado)

Não é nova, na humanidade, a tentativa de subjugação e submissão das mulheres. Até a criação de deuses e deusas foi abandonada, para dar lugar a um deus macho, único e poderoso.
Pois tenho para mim que deus que é Deus, mais perfeito seria se fosse gaja e, que por mais perfeito que fosse se sentiria melhor na companhia de outros deuses.
Mas não, o homem assim o criou e ao criá-lo, não contente, criou ainda a sua criação e, ao criar a sua criação, ainda insistiu em criar primeiro o homem e dele fazer a mulher. É preciso lata e falta de gosto e de imaginação. Todos sabemos que, se deus fez algo melhor que a mulher, só ele saberá o que é, guardou só para si próprio…

E, depois que a humanidade se conhece, depois que o mundo é mundo, existem enfermos e enfermeiras que os cuidam, que lhe são apoio na sua falta de firmeza ou lhe são as mãos e os pés e as pernas, na sua falta de mobilidade. Talvez este “fermo” possa ter a mesma origem do italiano quieto.
Trata-se, não da profissão mais antiga do mundo, que essa sabemos bem que é a de usurpador. Também percebi, na cabeça de alguns, que a mais antiga do mundo seria a prostituição. Lá vai dar quase ao mesmo. E a pior não é a do corpo, é a do cérebro, é óbvio. Mas, a tal enfermagem, a gente que cuida de gente, será, sem dúvida, das mais antigas da humanidade.

Foi, então, criada a Enfermeira, uma boa ideia de criação. Um ser afável, mas sem coração, que tê-lo não dá jeito, é perigoso e pode atrapalhar. O meu, há já muito que o trago no bolso de outras calças, deixo-o na gaveta, quando vou trabalhar, sou um desalmado e sem coração.
Apenas dois braços fazem das enfermeiras seres pouco produtivos, pouco eficientes e mesmo pouco eficazes. Com uma mão tratam, com a outra confortam, com a outra escrevem poesia nos lençóis descartáveis, e se mais houvesse melhor seria. Não se admitam nas escolas enfermeiras com menos de três braços.

Tal como (as dores e as enfermidades; e a morte; e o nascimento; e a tristeza; e a alegria), não possuem qualidade de noite ou de dia, da mesma exacta forma que não existem feriados nem dias santos para os heróis do dia a dia, convém que estejam munidas de apêndices vários, para poderem ser noite e luz, para poderem ser abnegação e conhecimento, para que a sua presença seja como o mar, a terra e o vento, sempre presentes.
E assim se criaram as enfermeiras, bastante perfeitas, bastante bem-feitas, mas talvez brancas e sem identidade, melhor ainda que não tivessem nem alma nem vontade…

Para quem não sabe, com mil saberes de mil qualidades, com o ecletismo na cabeça e o holismo no sítio do coração. Até da merda, que o enfermo caga, faz objecto de leitura e mensuração.

Enfim, parece que o Homem não é muito bom a criar deuses, mas, em contrapartida, sabe fazer, eximiamente, Enfermeiras. Saiba o mundo conhecê-las, mas também reconhecê-las. Como verdadeiras artistas que são, merecem palmas.

Mas só palmas não enchem barriga.

  Pimenta no cu dos outros… (Série)   Inspirado num poste sobre espera. A vida, se a observarmos, de todos os lados, e a conseguirmos ...