segunda-feira, 29 de junho de 2020


Plataforma de Acoplagem Intergeracional


Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado)
Há marcas que nos marcam de e para sempre. Uma dessas marcas é o umbigo, esquecido, no meio da pança ou na planura de uma barriga virgem e ávida de mimo. Uma depressão de modelo tão variável que pode mesmo apresentar-se como um vale invertido. Modelos variados, quase comparável a um dermatóglifo.
Muitas vezes depreciado, muitas vezes alvo de julgamentos egoístas e de índole egocentrista, não escapa a expressões como: - “vives a olhar para o teu umbigo”; - “tens um umbigo muito grande”.
Engraçado, poderíamos dar-lhe um valor mais introspectivo. Por ali entrou o nosso sustento, a nossa garantia de vida, durante nove meses (na maioria de todos nós). Por ali saiu, também, a informação para o corpo de nossas mães: - continua a segurar-me aqui dentro, ainda não sou capaz sozinho e lá fora, onde o mundo é duro, frio e cheio de ar.
Olhamos para o nosso umbigo, com ar de culpa e remorso, talvez por falta de sermos solidários e não por falta de o vermos como uma das maiores provas de solidariedade. Olhamos para esta cicatriz, indelével e ancestral e não lhe damos um ar leve, moderno, desempoeirado, de “Plataforma de Acoplagem Intergeracional”.
Agregados a uma nave Mãe, com a qual viajamos no tempo e no espaço, algures num universo de intimidades, nascemos acoplados por essa plataforma, por onde se trocaram nutrientes e informações químicas (e outras desconhecidas ou inimagináveis preciosidades). E, aquilo que nos ocorre é desdenhar de tão gostosa marca de união e continuidade, em vez de a mimarmos como se fosse a porta do buraco negro do nosso verdadeiro universo interior.
Talvez, alguns, mais cibernéticos, invejosos da capacidade que outros têm de serem felizes, preferissem nascer com uma ficha USB ao invés de um misterioso umbigo de pele. E até seria mais fácil controlar a vida dos outros. Não haveria protecção de dados que nos salvasse. Bastava ligar ao PC e todas as fomes e sedes, todas as emoções e desconsolos, apareceriam escarrapachados, num ecrã pasmado.
Fiquem de bem com os vossos umbigos e não tenham zelotipia de qualquer felicidade que seja.

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