quinta-feira, 10 de junho de 2021

Bom Ressentimento


Para que não restem quaisquer dúvidas, confesso o meu ressentimento, o bom ressentimento. Ando com a lembrança plena, até cima, de coisas boas.

Há poucos dias vi um filme de animação, sobre a celebração do “Dia de los Muertos”, celebração de origem Indígena, que consiste na crença de que no dia 2 de Novembro, os mortos estão autorizados a sair das suas moradas e a visitar-nos. Segundo essa crença, só aqueles que têm quem os recorde, que tenham lembranças deles, e apenas esses, conseguem autorização para fazer a viagem. E com essa crença, eu, um descrente insanável, tenho que admitir que creio, creio repleto de ressentimentos, de magníficos sentimentos, que vão e voltam. Há pessoas que não morrem!

.Tenho a felicidade, dorida, de contar, já, com algumas dessas pessoas na arca das minhas memórias. Às vezes desejo, ardentemente, que essas pessoas voltem, mesmo que seja só nos dias dos mortos. Outras vezes sinto, ressinto, que nem sequer é necessário que isso aconteça, porque essas pessoas me deram, me ensinaram, construíram em mim, constelações de universos que me permitem ser melhor do que antes de as conhecer. E sinto que eu e elas nos revisitamos regularmente. E conversamos, e rimos e choramos, como sempre fizemos.

Assim me confesso eternamente ressentido, eternamente agradecido, e t e r e a m e n t e reconhecido, Dona Lucília.

D. Lucília
Ressentido, mesmo, quando a minha filha, a quem sempre banhaste de mimos, de gestos de carinho, mas de gestos efectivos e afectivos, não de gestos ocos ou fingidos, porque resultaram sempre em bons ressentimentos para ela, quando a minha filha me fala de ti como se espelhasse esse carinho num mar de recordações, de revisitações.

E, em segredo, em segredo ressentido, confesso. Confesso que, a Dona Lucília, fez de mim um cozinheiro de terceira, para sempre… Confesso que isso não podia deixar-me mais feliz, porque, sempre que cozinho certas “comidas”, sei que a minha filha vai sempre dizer: “Está bom, pai, mas não está tão bom quanto o da Dona Lucília…”. E confesso que é verdade. Ela temperava com um amor que eu não tenho na minha cozinha. Um tempero que só as grandes Almas podem ter…

Que ressentimento delicioso, que ressoa para alem de mim, nas boas memórias que minha filha guarda e que, espero, venham a ser ressentidos nos meus netos e nos meus bisnetos... e nos bisnetos deles. Para que possa existir, sempre, sempre, sempre… Dia de los Muertos…

Até parece que estou a ressentir o sabor de uma boa jardineira, ou de umas sardinhas fardadas, ou de umas batatas no forno, só com sal e azeite… Só batatas… mas, batatas da Dona Lucília… Ahhhhhh!!!!

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