sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

 “O que é um peido pra quem tá cagado?”


Senhoras e Senhores passageiros deste destino inexorável. Um sorriso fica-nos sempre bem, acreditem, ainda a procissão vai no adro, ainda falta estoirar muito foguetório e, tal como expressa a Extensão de Gattuso À Lei de Murphy: “Nada é tão mau que não possa piorar”.

Haveria eu os meus tenros ignorantes e longínquos 25 anos, na altura a frequentar o último ano do curso, na Sábia e Altiva Lusatenas, e senti “claramente sentido”, o sentido que tem o turbilhão da ira dos deuses mais brincalhões.

Eram quase nove da madrugada, acordei, de boca seca e dor na mona (tinha-me atulhado de estudos na noite anterior…), atrasado de tempo e de vontades.

A custo desenvencilhei-me dos lençóis, que tudo faziam para contrariar o meu ímpeto de assistir às aulas (eles lá teriam as suas razões). Corri para o chuveiro, reguei-me com água por dentro e por fora, com água que teimou em chegar-me fria a todo o lado. Ensaboei-me apressado. Abri novamente a torneira que, em vez de cuspir água para fora, fez um desesperante glu, glu, aspirando os últimos pingos para dentro, anunciando que tinha feito greve ao meu banho.

O meu quarto era num saudoso 4º andar, aquecido, ternamente, por três, abaixo, de lindas estudantes. Enrolei-me na toalha, dirigi-me, ensaboado, enregelado e envergonhado do meu fraco porte atlético, ao elevador, para aproveitar a lei da gravidade da água que esperava encontrar num chuveiro da cave (era o último ano e já conhecia as sebentas quase todas).

O elevador, servil e manhoso, fez questão de parar no terceiro, no segundo, no primeiro (sempre para entrarem belas moças que mostraram bem, com o olhar, o que pensavam do meu aspecto e da minha fraca figura), e quedou-se, caprichoso mudo e mole, entre o primeiro andar e o R/C, avariado e avariando –me os nervos. Bonito serviço! Que a estupidez nunca falte ao meu colega que desabafou, sem pudores de sabedoria: - “Ainda bem que a luz está acesa, é que eu sofro de claustrofobia…”.

A primeira aula já tinha ardido e eu já espirrava de frio, quando o elevador retomou a marcha para o R/C e depois para a cave.

Livrei-me do sabão com uma minúscula quantidade de água que desceu por um fio fino, do chuveiro até mim, sequei-me, enrolei-me na toalha, tremeliquento de frio e de raiva e subi, no elevador, desafiando-o em voz alta, para que as colegas e os colegas que comigo viajavam, em abundância rara, percebessem que eu não parecia só esquisito, estava mesmo doido varrido.

Vesti-me. Quando voltei a passar pelos chuveiros senti correr água, fui fechar a torneira e verifiquei, com agrado de lágrimas, que já tinha voltado a água ao 4º andar. Porra!

Voltei a desafiar o elevador. Como já levava um ar decente, minimamente, apenas entrou uma colega, das que eu menos gostava, e das menos bonitas, e a viajem foi rápida.

Saí para o exterior da residência, pelas traseiras, por uma escadaria que dava acesso rápido às aulas. Mal tinha posto o pé nas escadas e já o S. Pedro, que devia estar mesmo à espreita, descarregava toda a água que podia, numa chuva grossa e furiosa.

Quando cheguei ao átrio das salas de aula estava mais molhado do que em qualquer momento do banho matinal. Parecia um guarda-chuva fechado.

Constatei, num misto de ira e de alívio, que não estava atrasado para a segunda aula, mas esta não se iria realizar por falta do professor. Irra!

Decidi ir tomar um café, para acalmar as dores de cabeça, dos excessos “estudiosos” da véspera.

Desci as escadas do edifício, para me dirigir a uma tasquinha, em frente, que chamávamos de, nunca percebi bem porquê, “Porcalhota”. Não cheguei lá. Consegui enfiar um pé, quase até ao joelho, numa enorme poça de água, que o S. pedro enchera, a propósito, e à medida…

Decidi que o dia não iria continuar assim. Dirigi-me para o meu 4º andar, pela escada (não fosse o elevador estar de conluio com as horas más da existência), e deitei-me. A cama era baixinha, o trambolhão, se acontecesse, não seria certamente grande.

 

Há poucos dias atrás, enquanto sorvia um café, acompanhado de duas colegas de trabalho, numa curta pausa de trabalho, junto ao canal da Ria de Aveiro, esbocei um sorriso, só para mim, ao recordar este episódio. Este sorriso não chegou a todo o rosto e não tive tempo de partilhar o seu motivo. Passou uma gaivota, ou desarranjada dos intestinos ou telecomandada por alguém dos céus, e cagou-me, literalmente, em cima.

E sim, foi mesmo para mim. Não correu mal, escapou o chapéu, no qual faço prosa, a mesa, e também, ilesas, as minhas colegas.

Voltei para o serviço com uma só interrogação:

- Qual será o verdadeiro significado de Annus, na expressão “Annus Horribilis”?

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