terça-feira, 24 de novembro de 2020

Que hora é esta?!?

 

O Jaquim, da minha terra, confessou-me andar um pouco sem saber das horas. Mais do que isso, lamentava-se ele, entre um trago de cachaça e um cofiar das barbas argênteas:

Ilustração de Danielle-Mae (Obrigado)
- Sabes Bigorna… sinto-me estuprado no cérebro…

E lá me contou ele, com os cantos da boca para baixo e os sobrolhos enrugados como
papel que se lança ao lixo:

- Primeiro vieram uns, lá das vacinas do vírus da Covid, dizer que a eficácia da sua poção mágica era de 90%. Depois, vieram outros e logo se apressaram a dizer que a deles era melhor, e mais isto, e mais aquilo, e que chegava aos 95%.

- E isso não são boas notícias Jaquim? – Perguntei-lhe eu encavacado.

- Talvez, se isso não tivesse feito com que os primeiros emendassem a mão, para dizerem que a sua vacina também preveniria 95% das infecções. Assim, como quem tira um gato de dentro de uma cartola. Sim, que já se vê que aqui anda gato escondido com o rabo de fora.

E como se não bastasse, Bigorna, veio um terceiro feiticeiro, que tinha anunciado uns míseros 70% de eficácia, e diz que se enganou a testar a poção mágica, e que depois de mais uma colher bem cheia do postemeiro, a eficácia se levantava para os 90%. Espero que tenha explicado isso às cobaias.

- Pois. Até dá vontade de Orar. Ora merda para isto tudo! Perdoa-me lá Jaquim, a veemência da minha oração… Não tarda, se algum se arvora em ter eficácia de 100%, LOGO OUTROS VIRÃO DIZER QUE A VACINA DELES CURA TUDO… E TUDO E TUDO… E pena será que não cure a intrujice e a mentira e a avareza e… e a injustiça e a fome e falta que faz a poesia…

- É disso que te estou a falar, Bigorna. Até me sinto fora do tempo e a recordar aquela vez em que me cruzei com a Maria Xarope de Giesta, quando ela vinha das terras (de cavar, mondar, regar e chorar), e eu lhe perguntei se ela tinha horas.

- E então, Jaquim, que te respondeu ela?

- Disse-me, na sua simplicidade do tamanho do mundo: “Não tenho relógio Jaquim, costumo ouvir o sino da torre, e parece, parece, Jaquim, que me deram duas, ali atrás da mata.”

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