Coisas do Arco da Velha
Não posso resistir a mofar de
algumas misérias humanas. Ainda que saiba poder ser mal recebido a rir, a
verdade é que chorar não me aparenta acrescentar melhor provento.
Ouvi falar de uma ideia, pequena
na sensatez, mas grande na intencionalidade. O desígnio versava sobre sermos
nós o próprio presépio e sobre o “menino jesus nascer dentro de nós”. Coisas
deste festival de festas, luzes e saturnálias
Confesso que nem a bondade do
espírito natalício me assossegou, nas entranhas, as estranhas contradições
destes propósitos. Lá sermos presépio, até pode ser verdade e aceitável. Uns
mais outros menos conseguimos albergar, simultaneamente, vários animais dentro
de nós, com trivial e eclética bestealidade. Por mim, sem dificuldades, faço de
burro, com algum tremor em defraudar o lindo animal. Já quanto ao “menino
jesus” nascer dentro de nós… Bem! Trata-se da tendente miserável capacidade
humana, no seu melhor, para fazer deuses. Vejamos, o quão poderosos somos, que
até deuses somos capazes de manufaturar.
Mas como se não bastasse, ainda
esta ideia me não tinha assentado nas vísceras, já outra se levantava em forma
de notícia (nada nova no caso), sobre um caso de exorcismo ou abuso ou violação
diabólica ou, quiçá, onírica obnubilante opera. É a mesma miséria humana, mas agora
de trevas travestida. A incomensurável habilidade para cozinhar demónios,
diabinhos, mefistofélicos e levados da breca, alimentada a pecados sexuais ou a
fomes impiedosas dele, miserbiliza qualquer pecador. Como se o inferno das
nossas vidas não fosse suficiente, é necessário inventar outros que só o poder
das religiões possa superar, ou ampliar…
A lógica cabe, toda ela, inteira
e sem vergonhas, no que já sabemos sobre problemas e soluções e, sobre a
frequente aparente aleatoriedade com que um e outro (problemas e soluções), nos
são vendidos, umas vezes por charlatões e outras por religiões. Afinal é bem
pensado, se temos uma solução vá de ataviar um problema que lhe dê saída. Se
sabemos exorcizar vai de chamar o diabo, se temos o diabo vai de fazer deuses
(dentro de nós).
Parece, então, que um sacerdote
que agora já não é sacerdote, mas que já foi, isto porque se os sacerdotes são
feitos pelos deuses só os deuses os podem “despadrar”, mas lá está, nalguns
casos, os homens endeusam-se e podem, foi acusado de ter tentado tirar o diabo
do corpo de uma mulher por vias menos ortodoxas. Os homens podem tudo… E este
não só pode como não carece de reguladores de tratamentos de qualquer
organização mundial. E desconfiamos nós da regulação da produção das vacinas…
Mas vejamos. Estou coagido a
pensar que, quando se trata de tirar o diabo do corpo de outrem, o buraco por
onde ele é cutucado e expulso deixa de ter importância face à sua utilidade. O
Diabo saiu. Se outro qualquer, pela mesma entrada, lá não foi colocado, labor
findo, obra feita. Mas advirto-me de estar errado em assim pensar. Tivesse o
sacerdote em questão assim duvidado de si próprio e outra seria a desgraça
final. Ficava a pessoa com o diabo só para si e o padre com os seus próprios
demónios e tentações. Afinal, num presépio como num homem sempre pode caber cada
besta… E, afinal, terá sido uma violação, um mal-entendido ou um
desentendimento entre os demónios da que se diz vítima e os demónios do que se
diz ter violentado?
O mundo é, ele próprio, uma
dúvida. Será que no presépio também cabem diabos? Na realidade o Mefistófeles
não é um animal qualquer e, segundo o que parece, tanto se pode meter dentro de
uma pessoa como de um animal. Eu confesso, até me sinto um pouco possuído, a
julgar pela vontade que tenho de desatar aos coices a este tipo de misérias.
Melhor mesmo mofar. E, nem a
propósito, me veio à alembrança uma história velha, sobre a filha do Jaquim, da
minha terra. A pobre catraia, na escola, fora escolhida para ser a vaca, no
presépio das festividades. Claro está, a menina deu num choro convulsivo e
diluviano, recusando-se a ter esse papel. Como não houvesse grande solução, a
professora questionou-a sobre qual o papel que gostaria de fazer, advertindo
com ar gutural, que o de nossa senhora seria para ela (o papel já estava
decidido e a própria virgindade, de Nossa Senhora, não seria problema para uma
professora). A filha do Jaquim, da minha terra, sorriu, na sua pureza de luar
de prata, e respondeu com joia plena. Quero ser o Burro, minha senhora, quero
ser o Burro!
Também eu, também eu menina, e
que o jeito nos não seja parco. E também eu a compreendo. Pois que não vamos
mais longe e, as histórias são para ser contadas, reza uma vetusta e certamente
verosímil, sobre um meu patrício, de nome Manuel Merda que vivia desgostoso da
albarda.
Correu Manuel Merda Seca e Meca
para mudar de nome, mas a burocracia e os burocratas não lhe facilitavam a
vida. Chegou um dia que um célebre presidente, não aquele que gostava do
sorriso das vacas, mas um outro que gostava de abraços, lhe concedeu o desejo
da mudança.
Diz Manuel Merda, por qual mais
digna graça queres ser conhecido? Ao que o pobre homem respondeu em júbilo:
- João Merda… apenas e só João
Merda.