“O que é um peido pra quem tá cagado?”
Senhoras e Senhores passageiros deste
destino inexorável. Um sorriso fica-nos sempre bem, acreditem, ainda a
procissão vai no adro, ainda falta estoirar muito foguetório e, tal como expressa
a Extensão de Gattuso À Lei de Murphy: “Nada é tão mau que não possa piorar”.
Haveria eu os meus tenros ignorantes e
longínquos 25 anos, na altura a frequentar o último ano do curso, na Sábia e Altiva Lusatenas, e senti “claramente sentido”, o sentido que tem o turbilhão
da ira dos deuses mais brincalhões.
Eram quase nove da madrugada, acordei, de
boca seca e dor na mona (tinha-me atulhado de estudos na noite anterior…),
atrasado de tempo e de vontades.
A custo desenvencilhei-me dos lençóis, que
tudo faziam para contrariar o meu ímpeto de assistir às aulas (eles lá teriam
as suas razões). Corri para o chuveiro, reguei-me com água por dentro e por
fora, com água que teimou em chegar-me fria a todo o lado. Ensaboei-me apressado.
Abri novamente a torneira que, em vez de cuspir água para fora, fez um
desesperante glu, glu, aspirando os últimos pingos para dentro, anunciando que
tinha feito greve ao meu banho.
O meu quarto era num saudoso 4º andar, aquecido,
ternamente, por três, abaixo, de lindas estudantes. Enrolei-me na toalha,
dirigi-me, ensaboado, enregelado e envergonhado do meu fraco porte atlético, ao
elevador, para aproveitar a lei da gravidade da água que esperava encontrar num
chuveiro da cave (era o último ano e já conhecia as sebentas quase todas).
O elevador, servil e manhoso, fez questão
de parar no terceiro, no segundo, no primeiro (sempre para entrarem belas moças
que mostraram bem, com o olhar, o que pensavam do meu aspecto e da minha fraca
figura), e quedou-se, caprichoso mudo e mole, entre o primeiro andar e o R/C,
avariado e avariando –me os nervos. Bonito serviço! Que a estupidez nunca falte
ao meu colega que desabafou, sem pudores de sabedoria: - “Ainda bem que a luz
está acesa, é que eu sofro de claustrofobia…”.
A primeira aula já tinha ardido e eu já
espirrava de frio, quando o elevador retomou a marcha para o R/C e depois para
a cave.
Livrei-me do sabão com uma minúscula
quantidade de água que desceu por um fio fino, do chuveiro até mim, sequei-me,
enrolei-me na toalha, tremeliquento de frio e de raiva e subi, no elevador,
desafiando-o em voz alta, para que as colegas e os colegas que comigo viajavam,
em abundância rara, percebessem que eu não parecia só esquisito, estava mesmo
doido varrido.
Vesti-me. Quando voltei a passar pelos
chuveiros senti correr água, fui fechar a torneira e verifiquei, com agrado de
lágrimas, que já tinha voltado a água ao 4º andar. Porra!
Voltei a desafiar o elevador. Como já
levava um ar decente, minimamente, apenas entrou uma colega, das que eu menos
gostava, e das menos bonitas, e a viajem foi rápida.
Saí para o exterior da residência, pelas
traseiras, por uma escadaria que dava acesso rápido às aulas. Mal tinha posto o
pé nas escadas e já o S. Pedro, que devia estar mesmo à espreita, descarregava
toda a água que podia, numa chuva grossa e furiosa.
Quando cheguei ao átrio das salas de aula
estava mais molhado do que em qualquer momento do banho matinal. Parecia um guarda-chuva
fechado.
Constatei, num misto de ira e de alívio,
que não estava atrasado para a segunda aula, mas esta não se iria realizar por
falta do professor. Irra!
Decidi ir tomar um café, para acalmar as
dores de cabeça, dos excessos “estudiosos” da véspera.
Desci as escadas do edifício, para me
dirigir a uma tasquinha, em frente, que chamávamos de, nunca percebi bem porquê, “Porcalhota”.
Não cheguei lá. Consegui enfiar um pé, quase até ao joelho, numa enorme poça de
água, que o S. pedro enchera, a propósito, e à medida…
Decidi que o dia não iria continuar assim.
Dirigi-me para o meu 4º andar, pela escada (não fosse o elevador estar de conluio
com as horas más da existência), e deitei-me. A cama era baixinha, o trambolhão,
se acontecesse, não seria certamente grande.
Há poucos dias atrás, enquanto sorvia um
café, acompanhado de duas colegas de trabalho, numa curta pausa de trabalho,
junto ao canal da Ria de Aveiro, esbocei um sorriso, só para mim, ao recordar
este episódio. Este sorriso não chegou a todo o rosto e não tive tempo de
partilhar o seu motivo. Passou uma gaivota, ou desarranjada dos intestinos ou telecomandada
por alguém dos céus, e cagou-me, literalmente, em cima.
E sim, foi mesmo para mim. Não correu mal,
escapou o chapéu, no qual faço prosa, a mesa, e também, ilesas, as minhas
colegas.
Voltei para o serviço com uma só
interrogação:
- Qual será o verdadeiro significado de Annus, na expressão “Annus Horribilis”?