sábado, 15 de fevereiro de 2020


Os donos da vida alheia.

É fastidioso perceber que a vontade de ser dono é transversal a toda a história e a todos os momentos da humanidade.
Ser dono de pessoas e ter direito sobre a suas vidas, sobre a sua força de trabalho, entranhou-se na pele de tanta gente que parece adesivo. E todos sabemos como é o adesivo (irritante). Só existem dois tipos: o que não cola e o que não descola.
No calor morno e desenxabido, da discussão em torno da despenalização da morte medicamente assistida, fiquei a perceber que não faltam pretendentes a donos da minha vida…. Postulantes a donos da vida alheia – No final de contas, cobiçosos de escravos. Que pútrida sina a deste mundo de merda!
- Eu só queria que me deixassem acabar com a minha vida, quando achar que estou cansado, gasto, em sofrimento…
Mas respondem-me:
- não! Que a minha religião não te o permite!
- não porque eu não estou de acordo!
- não porque eu como médico não quero fazê-lo, e os outros também não porque eu penso que não.
- não porque os outros também podem querer… podem sentir-se no dever de te seguir…
- não porque a vida é inviolável!
E eu calo e, no fundo escuro da minha treva de angústia, num sussurro sereno envolto em fel, apetece-me mandar-vos meter a vossa religião no… mais fundo da VOSSA VIDA. Apetece-me recomendar-vos que as vossas ideias não podem ser chicotadas na minha vontade.
Que o vosso mester não pode impedir o mester dos outros.
Que, se os outros também quiserem, isso não significa que possam colonizar o cérebro deles e as suas vontades.
E que sim, a minha vida é inviolável e a tua também.Não Violes a minha obrigando-me a viver. Obrigadinho!
Eu não sei se vou querer, algum dia, pedir ajuda para morrer serenamente, no momento em que estiver cansado. Não sei.
Também não sei se tu vais querer fazer isso.
Sei que, se qualquer um de nós, amanhã, pela névoa fresca, calma e matinal do nosso entardecer, quiser saltar sem para-quedas, nem tu, nem eu, nem qualquer outro arvorado em dono das nossas vidas, vai conseguir impedir essa decisão… Mas se, acaso a fatalidade me tolher as pernas e os braços, pensarás que deva também ficar privado da liberdade de saltar do avião, estarás a olhar apenas para ti, na tua imensa perfeição.
Pena… Eu só queria que permitisses que eu peça ajuda a alguém e autorizasses esse alguém a ajudar-me.
Mas não, tu opões-te… Queres ser dono da Vida alheia?

Foto de Bigorna (após incêndio Outubro/2017, Oliveira do Hospital)
Pois eu digo-te:


Quando Eu Morrer…

Quando eu morrer quero estar bem vivo,
quero ver passar a vida.
Quero que ela me diga bem alto
que parte sem ter pena
que se ausenta sem medo.

Quando eu morrer quero estar bem atento.
Quero ter tempo,
quero ter tento,
ouvir, na voz do vento, o doce rumor do firmamento.

Quando partir quero saber que parto,
degustar sábia e demoradamente o acto,
de olhos abertos,
para olhar o céu inteiro,
a terra, o mar e tudo quanto é verdadeiro.

Talvez só morra uma vez…
E tão sublime e especial momento
merece que eu esteja atento.

Não quero partir sem saber.
Quero dar a mim próprio alento,
fazer-me a despedida…
Pior do que deixar a vida
seria fazê-lo sem querer…
                       Bigorna

1 comentário:

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