domingo, 15 de março de 2020


Cuidado com os miúdos!

Quando era bem pequeno e alguém ficava doente ou morria, costumava perguntar, ao meu Avô Bigorna, se eu também ia morrer.
Na sua grande generosidade, ou por piedade, simplesmente, ele sorria e dizia-me:
- Não. Tu vais ficar cá, com os comboios.

Ilustração de Danielle-Mae Duran (Beijinhos)
Eu ficava mais sossegado e nem voltava a preocupar-me com aquela questão. Tirando o facto de nem imaginar o que seria um comboio, para mim, não morrer já estava para lá de mais melhor.
Continuei a crescer, vi o mar, conheci os comboios e, a ideia de ficar com os comboios e poder continuar a ver o mar, não me desagradou.

Depois disso, já me desiludi com tantas coisas que, confesso ter perdido, muitas vezes, a esperança de não morrer. Direi mesmo que a maior parte dos últimos tempos só acreditei que ia morrer.
Mas, nos últimos dias, não só recordei esta doce vivência entre mim e o meu avô, como me sinto impelido a voltar a acreditar que posso ficar cá… Com os comboios.

Na realidade, pensei um pouco (acreditem que não doeu muito), e reconheci que o Velho Bigorna pode muito bem ter razão…
Afinal, ele disse-me algo que há mais de 50 anos a realidade ainda não desmentiu. Continuo VIVO!
Se vou ou não ficar com os comboios? Pouco me importa. Preferiria ficar cá mas que alguém ficasse com os comboios por mim.

Porquê?

Por puro egoísmo… Assim teria a certeza de não ser o único a ficar por cá.

Ah! E já agora, que engraçado. Com tudo isto acabei por descobrir que o Velho Bigorna continua tão vivo em mim… Até fomos os dois ver passar os comboios…

1 comentário:

  1. Muito bonito, genuíno!
    Ficamos para (deixamos) semente! Dizia-se na minha aldeia!

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