quarta-feira, 29 de abril de 2020


A língua do Bicho

Acometo-me de pasmo. Ganhei este quase vício fatal e forte de pasmar, e a verdade é que nem sempre pelas melhores razões. A natureza pasma-me, mas a ignorância, tanto a minha quanto a dos outros, também me pasma, como de pasmo quase morro e choro quando vejo um rebanho de ovelhas ou uma criança a mamar.
Anda por aí uma dor, que não sei exactamente de quem seja, sobre um vírus que alguns querem que seja chinês e outros americano e outros ainda russo. Mas coitado, ninguém o quer… vai morrer apátrida e de tão zangado, quanto me parece, pode ser revolta pelo sentimento de abandono, faz mal às pessoas. Levem-no a um certo “pedo psicólogo fofinho à gomes de sá” que ele logo lhe receitará apanhar sol por dentro. Talvez melhore.
Qual será, pois, a língua do bicho? Qual será a motivação de alguns, línguas de trapo e com palmo e meio de língua, menos de altura e menos de testa? Talvez seja trampa no caco ou talvez falta de caco. Quiçá o tico e o teco em eterna peleja? Não entendo esta tão grande vontade em dividir o mundo e as pessoas, em estrangeiros e etnias e fazer muros e patifarias.  E parece que o bicho não se apoquenta nem se apouca nadinha com isso. “Tal como mosca sem valor, pousa com igual alegria, na careca de um doutor, como em qualquer porcaria.”
Recordo-me que, em tempos que já la vão, fui com minha mãe ao mercado da vila. Eu teria os meus catorzes, quinze verdes anos e minha mãe uma cota dos seus quase cinquenta. Sempre me lembro de minha mãe ter uma simplicidade de pensamento de descongelar qualquer iceberg.
Pelo caminho cruzámos com uma menina de cor e altura suecas que por sua vez levava, pela mão, uma menina de cabelos loiros e olhos azuis, aí pelos 4 anitos. As duas seguiam conversando, naquela língua tão estranha que só poderia ser sueco.
Minha mãe olhou para mim e apenas disse, com a simplicidade que sempre lhe conheci:
- Não consigo perceber como é que aquela criança, tão pequenina, e já fala e entende aquela língua…
Ilustração de Danielle-Mae (Beijinho e Parabéns)
E os dois continuámos. Eu ri por dentro e para dentro. O meu cérebro ficou a remoer naquilo, pois que também não nasci parecido com os do lado inteligente da minha família. Agora a história voltou-me ao caco, pensei e repensei e, mais ou menos convicto, concluo que o bicho é tão pequenino que não deve ter qualquer língua.
É pena, talvez ele contasse algo sobre a sua nacionalidade… ou sobre os nacionalismos e as suas dores…

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