A alegria natural do Espanto.
Parece-me urgente permitir que a simplicidade das coisas simples se evada dos grilhões dos dias complicados do nosso mundo complexo e complexado. Mundo complexado pelo ruido das luzes que permanentemente ameaçam dissecar-nos e desnudar o nosso mundo interior. Por este motivo passamos fingindo que já nada nos espanta. Já tudo vimos e por tudo fomos vistos. Coisas próprias de homens capazes de fabricar deuses com capacidade de aniquilar qualquer ponta de espanto e espontaneidade. Pena que assim seja.
Há poucos dias fui tomar um café. Coisa mundana, banal, sem qualquer interesse, se a simplicidade das cousas não tivesse acrescentado sabor à alegria que tão bem tempera o ar que respiramos. Cheguei e vi um grupo de pessoas, com um aspecto que os meus preconceitos não assinalaram como anormais. Um pormenor. Todas eram vestidas de um crachá, dependurado ao pescoço (pescoço que ligava, de forma normal, o corpo à cabeça), com a inscrição do suposto nome de cada um. O crachá acrescentava outras informações. Confesso que não li. Devo desabafar que fico com a ideia de que se ler tudo o que me rodeia por onde passo (com o pouco que sei e com a dificuldade que tenho em soletrar), nunca vou muito longe. A verborreia persegue-nos (oral e escrita), não há paciência para tanto aviso, recomendação, alerta, advertência, avisos (e avisos que dizem: depois não diga que não o avisámos). (fotografia de Bigorna)
Antes de entrar na Taberna fui surpreendido pelo bruaá dos presentes. Passava um comboio. Os dedos das pessoas apontaram no seu sentido. As vozes repetiram, cadenciadas e emotivas: olha, olha, lá vai ele, lá vai, viste? Viste, viram? Ahhhh!!!
Confesso que achei estranho tamanho espanto com algo tão banal, frequente e assíduo naquele local. Por momentos pensei que circulasse de rodas para o ar ou atravessado e fora dos trilhos, mas não. Tudo normal, nos trilhos, trilhando o mesmo percurso de sempre e sem dizer mais do que vummmm (não, não dizia café com pão café com pão...).
Entrei no Botequim, vizinho à estação do referido caminho de ferro, pedi o desejado café, e reparei que todos os presentes co
m o já referido crachá começaram a abandonar o local. Não, o motivo não fora o meu pouco natural viso. Não assustei ninguém. Ali, naquele local e naquela circunstância, o espanto não era eu. O espanto era o comboio que passou e foi embora sem passar cartucho aos dedos apontados e ao bruaá com o qual foi brindado. As pessoas abandonaram o local e ouvi alguém comentar. Estes senhores são Madeirenses e estão a fazer uma excursão aqui no continente.
Não comentei. Ri de mim próprio. Ri e sorri com a simplicidade de quem ainda se espanta, qual criança, com a essência da humanidade dentro das nossas carapaças contra o barulho dissecador das luzes que ameaçam dizer a todos se estamos ou não a usar cuecas.
A realidade é simples e a simplicidade merece que a brindemos com alegria e com o reconhecimento de que sabemos pouco, muito pouco, do tudo que é cada mundo (e cada um de nós é um mundo de mundos). Na Madeira não há comboios (ponto final). Ver algo que nunca ou raramente se vê e manifestar o espanto é de uma humanidade simples, deliciosa e sã. Ri da minha ignorância (e todos estão autorizados a rir-se dela). E veio-me à memória uma frase batida... mas também um pouco do poema de António Gedeão “Aurora Boreal”: Tenho quarenta janelas, nas paredes do meu quarto (…) Pela maior entra o espanto, pela menor a certeza, pela da frente a beleza, que inunda de canto a canto. (…).
Viva a nossa capacidade de espanto. Bem hajam todos os que se espantam quando sentem essa necessidade.
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