domingo, 15 de julho de 2018


Coisas do Jaquim da Minha Terra




O Jaquim pediu-me segredo sobre esta estória. Eu prometi guardar segredo. Só vou falar disso porque este Jaquim não é o mesmo Jaquim real e concreto que me contou esta pérola da infância que, também poderia ser tua, ou minha.Mas segredo é segredo.

Fraldas da Estrela. Junho quente. Fim da Escola. Tarde de traquinices.

Estou Escondido - Foto de Bigorna
Jaquim e os companheiros do costume cobiçam as cerejas rubras e pecaminosas – os brincos do diabo; as pindericas; a caroça – da cerejeira do Ti Manel.

- Tenho-as lá melhores, mas estas, roubadas, têm outro gosto… - Comentava o Jaquim.

Hoje há crianças que nunca esfolarão, um joelho, se quer. E no entanto, chegam a adultos, já vetustos e com a alma plena de artroses. Pequenos diabos, tiranos, que nem pecar sabem.

Subiram todos para a cerejeira, o Jaquim, ágil como uma pulga, leve como uma pluma, subiu para a ponta mais alta, para as mais brindadas pelo sol, aquelas que só os melros conseguem bicar.

Empanturrou-se. Arrotou três vezes. De bom costume. Ia descer, quando o Ti Manel saiu à porta de sachola em riste, enquanto os companheiros, nos ramos mais baixos, se esgueiraram pelo batatal, rumo ao pinhal.

O Jaquim estava demasiado alto para fugir.

O Ti Manel fitou o seu vulto, do borrão dos seus olhos cansados:

- Estás aí figurão. Vais pagar por todos. Quando desceres logo verás como elas te mordem. Eu conheço-te!

A alma do Jaquim negrejou mais do que ginjas pretas.

Pensou em descer e pedir uma mão cheia de perdões. Rezou padre nossos mal rezados. Pensou fugir… Mas sabia que de nada valeria. Levaria umas lambadas ali e aguardaria pelas de casa, quando o Ti Manel contasse o sucedido à sua mãe. Era um bufo.

Cá em baixo o Dono continuava firme.

Acometido dos nervos, voltaram os apetites à pança do Jaquim, e voltou a rostir nas cerejas. Até que, sem apelo nem agravo, uma cólica desassossegou a barriga do pobrezito. As cerejas não podiam ter “caga já”, não! Estavam muito altas para isso. Devia ser dos nervos. Mas, o Jaquim tinha que obedecer à imperiosa exigência das tripas.

Pensou em arrear, ali mesmo, os calções… Mas achou ma criação. Lá furtar cerejas ainda vá que não vá… Mas aspergir o dono com a matéria das entranhas… Não podia. Isso não se faz, pensou.

De dois pinotes e três saltitos, esgueirou-se, escapuliu-se da cerejeira, antes que o Ti Manel pudesse dar um passo sequer.

- À ladrão! Eu conheço-te, bem podes fugir! – Vociferava o velho.

O Garoto fugiu para o grande penedo de granito, ali bem perto, abrigou-se atrás de um pinheiro manso, aliviou a tripa, limpou-se a uma pinha, sentou-se… Disse mal da sorte, quase desejou a morte. Pensou em ir para casa. Pensou em não voltar. Pensou…

Decidiu voltar. Tentar o fadário. Pedir encarecido ao dono que o perdoasse… Assim fez.

De grilhões nos pés e baraço ao pescoço, desceu os prados em direcção ao Ti Manel.

Ao longe podia ver o homem que cuspia ira e respirava fel. Acercou-se mais, e mais… e mais…

- Ó Quinzito – clama o Ti Manel – vens aí? – Ai se tens vindo mais cedo, ajudavas-me a apanhar uns meliantes que me vieram às cerejas! Ladrões! Canalhas!

A alma regressou ao corpo do Jaquim, lavada e leve, limpa e seca… Ainda que dorida e trémula. Percebeu que o Ti Manel fizera bluff. Afinal não o reconhecera.

- Queres cerejas Quinzito?

- Não muito obrigado. Não me apetece. Já comi… Ontem… - titubeante da voz.

- Pois é, Quinzito, apanharam-me a fazer uma sesta, caíram aí como melros e fugiram-me como ratos. Um ainda ficou, mas deve ser da marca do Mefistófeles…. Fugiu-me por entre as pernas que nem o consegui ver bem…



Coisas do Jaquim da Minha Terra.

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