Coisas do Jaquim da Minha Terra
O Jaquim pediu-me segredo sobre
esta estória. Eu prometi guardar segredo. Só vou falar disso porque este Jaquim
não é o mesmo Jaquim real e concreto que me contou esta pérola da infância que,
também poderia ser tua, ou minha.Mas segredo é segredo.
Fraldas da Estrela. Junho quente.
Fim da Escola. Tarde de traquinices.
Estou Escondido - Foto de Bigorna |
Jaquim e os companheiros do
costume cobiçam as cerejas rubras e pecaminosas – os brincos do diabo; as pindericas;
a caroça – da cerejeira do Ti Manel.
- Tenho-as lá melhores, mas
estas, roubadas, têm outro gosto… - Comentava o Jaquim.
Hoje há crianças que nunca
esfolarão, um joelho, se quer. E no entanto, chegam a adultos, já vetustos e
com a alma plena de artroses. Pequenos diabos, tiranos, que nem pecar sabem.
Subiram todos para a cerejeira, o
Jaquim, ágil como uma pulga, leve como uma pluma, subiu para a ponta mais alta,
para as mais brindadas pelo sol, aquelas que só os melros conseguem bicar.
Empanturrou-se. Arrotou três
vezes. De bom costume. Ia descer, quando o Ti Manel saiu à porta de sachola em
riste, enquanto os companheiros, nos ramos mais baixos, se esgueiraram pelo batatal,
rumo ao pinhal.
O Jaquim estava demasiado alto
para fugir.
O Ti Manel fitou o seu vulto, do
borrão dos seus olhos cansados:
- Estás aí figurão. Vais pagar
por todos. Quando desceres logo verás como elas te mordem. Eu conheço-te!
A alma do Jaquim negrejou mais do
que ginjas pretas.
Pensou em descer e pedir uma mão
cheia de perdões. Rezou padre nossos mal rezados. Pensou fugir… Mas sabia que
de nada valeria. Levaria umas lambadas ali e aguardaria pelas de casa, quando o
Ti Manel contasse o sucedido à sua mãe. Era um bufo.
Cá em baixo o Dono continuava
firme.
Acometido dos nervos, voltaram os
apetites à pança do Jaquim, e voltou a rostir nas cerejas. Até que, sem apelo
nem agravo, uma cólica desassossegou a barriga do pobrezito. As cerejas não
podiam ter “caga já”, não! Estavam muito altas para isso. Devia ser dos nervos.
Mas, o Jaquim tinha que obedecer à imperiosa exigência das tripas.
Pensou em arrear, ali mesmo, os
calções… Mas achou ma criação. Lá furtar cerejas ainda vá que não vá… Mas
aspergir o dono com a matéria das entranhas… Não podia. Isso não se faz,
pensou.
De dois pinotes e três saltitos,
esgueirou-se, escapuliu-se da cerejeira, antes que o Ti Manel pudesse dar um
passo sequer.
- À ladrão! Eu conheço-te, bem
podes fugir! – Vociferava o velho.
O Garoto fugiu para o grande
penedo de granito, ali bem perto, abrigou-se atrás de um pinheiro manso,
aliviou a tripa, limpou-se a uma pinha, sentou-se… Disse mal da sorte, quase
desejou a morte. Pensou em ir para casa. Pensou em não voltar. Pensou…
Decidiu voltar. Tentar o fadário.
Pedir encarecido ao dono que o perdoasse… Assim fez.
De grilhões nos pés e baraço ao
pescoço, desceu os prados em direcção ao Ti Manel.
Ao longe podia ver o homem que
cuspia ira e respirava fel. Acercou-se mais, e mais… e mais…
- Ó Quinzito – clama o Ti Manel –
vens aí? – Ai se tens vindo mais cedo, ajudavas-me a apanhar uns meliantes que
me vieram às cerejas! Ladrões! Canalhas!
A alma regressou ao corpo do
Jaquim, lavada e leve, limpa e seca… Ainda que dorida e trémula. Percebeu que o
Ti Manel fizera bluff. Afinal não o reconhecera.
- Queres cerejas Quinzito?
- Não muito obrigado. Não me
apetece. Já comi… Ontem… - titubeante da voz.
- Pois é, Quinzito, apanharam-me
a fazer uma sesta, caíram aí como melros e fugiram-me como ratos. Um ainda
ficou, mas deve ser da marca do Mefistófeles…. Fugiu-me por entre as pernas que
nem o consegui ver bem…
Coisas do Jaquim da Minha Terra.
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