Gosto, muito, de comer (ponto final)
(Ilustração de Bigorna) |
Nasci aos pés dos Hermínios, onde, por lá, também Lusitano e Viriato, terão vencido o Inverno e o Inferno. Tataraneto de ferreiro que, por dizer, “Quando vou para a minha bigorna sou homem para fazer um relógio”, foi brindado com a alcunha. Adoptei, com vontades e inveja saudáveis, esse rijo nome. Bigorna
Gosto, muito, de comer (ponto final)
(Ilustração de Bigorna) |
Porto no peito uma ânsia, talvez vã…
Cuido, em branca tela, de
palavras escritas, pintar o trago amargo que tem o esvoaço poeirento dos meus
caminhos de insucesso.
Caminho sob um complexo de ideias
e uto(fotografia de Bigorna)
pias que não consigo acobertar de fornix completo justo e perfeito. Em
alto e largo, tudo o que penso fica sempre num sofrimento de alguma angústia, em
um aperto que não permite às palavras serem maiores do que as sílabas que as
suportam. Quanto afago as palavras, para que cabendo justas nos significados
que lhe são lugar, sobram-lhe arestas que ferem, vértices que magoam, volumes
que adensam o gosto ocre das frustrações.
Evapora, assim, da lua um paladar
fermentado que se me adensa nas pituitárias. O Sol azeda-me nas tripas, faz-me
gases, avilta-me o desassossego das noites.
Permaneço assim, calado, num
acordo tácito.
No pórtico, de arco quebrado, a
cimalha aponta o céu estrelado. Não há palavras que garantam o tamanho da
imaginação, se ela quiser entrar no Templo. Fica o delubro sem porta e
ventilado, assim, dispenso janelas e tecto. Sem cruzes que mais agrilhoem
pensamentos e vontades, não ergo muros, nem paredes.
Olho as estrelas. Cabem todas, o pináculo
da catedral não é empecilho ao riscar celeste dos astros. A cauda dos cometas
não suja a sua alba grinalda… Passa, incólume, por nós, o universo inteiro, sem
gritos e sem as opressões das desgraças.
Melhor assim. Não estrago… Cumpro
o conselho avisado e simples:
Se nada de essencial ou agradável
houveres a proferir… permanece em silêncio florir, pensa na morte, deixa o
tempo porvir.
Hoje pisei uma bosta.
(Fotografia de Bigorna) |
ARISTIDES DE SOUSA MENDES
No Talmud poderá ler-se: “Aquele que salvou uma vida, salvou o mundo
inteiro”
Passam, hoje, 138 anos do
nascimento de Aristides de Sousa Mendes. Em 1940, este Homem, ignorado pela
história e pelo mediatismo, salvou da morte e do sofrimento atroz, milhares de
Judeus. Algo que põe a Lista de Schindler num “tiket de multibanco”. Muitos,
não só negam essas evidências como, não bastando, negam a existência das
atrocidades perpetradas por Hitler e pela sua horda de cães raivosos.
(Fotografia de Bigorna) |
Terão, esses “Chegados” à indecência
da falta d
e honestidade intelectual, dificuldade em explicar porque terá este
Homem – ARISTIDES DE SOUZA MENDES – tido a sua vida desgraçada (por um tacanho
ditador), depois de passar vistos a gente que “fugia sem razão para fugir”. Mas
isso nada interessa para quem o único interesse é um umbigo nauseabundo, feito
de tripas e desperdício de cérebros.
Fica a minha homenagem possível a
esse tipo de HOMENS. Homens que sabendo-se desgraçar a sua vida, não hesitam em
salvar cada “Estrela do mar que encalha na praia, como sendo menos uma a
fenecer”.
OBRIGADO
Bigorna (XIX6023VII)
DIA DOS HOSPITAIS
(Rosa - Fotografia de Bigorna) |
Bigorna (IV6023VII)
Há uma fatalidade em nós… se não matarmos, morremos. *
(Fotografia de Bigorna) |
Sonhos de Pedra
A serrania de serras da minha terra é grande, larga. Nela se espessam os ventrículos e esticam os átrios do coração dos beirões, tornando-os gente tão fria e dura quanto generosa e acolhedora, se a natureza agreste os põe à prova e quando é necessário sermos solidários.
Luana, pastora deste o ventre de sua mãe, pastora como sua avó, e a avó de sua avó, saíra de casa noite escuro, madrugada ainda longe, com as estrelas a anunciarem que o Sol ainda tardaria para aparecer atrás do grande monte, pronto a iluminar o caminho e fundir o gelo que a noite fria continuava a colocar sobre os rebentos mais tenros das ervas e do mato para as ovelhas apetecido.
O rebanho seguia-lhe o rasto, num compasso demorado, entre bocadadas nas pontas de mato e o passo curto dos borreguitos ainda de tenra idade. Mais atrás, com baforadas de vapor, como um fumo que lhe saía do focinho, caminhava pachorrento, Zangão, o Cão da Serra, de pelo comprido, cor de mel. Era uma procissão repetida, plena de religião, sem religiosidade pia e benta de santos e deuses, mas uma religião de pertença e união intangíveis. Pastora, rebanho, cão e natureza, numa comum união onde o verbo religar se conjugava na perfeição dos universos.
O Rei Sol espreguiçou o seu olho mais alto, esticando a pálpebra até ao tecto e espreitou por trás do penedio. Estava na hora de iluminar os caminhos dos mundos, dar ervas às ovelhas, acordar os pássaros e as abelhas que as flores já clamavam por elas. Porem era Inverno, duro, e o senhor cinzentão céu fazia-se adivinhar, carrancudo e severo.
O vale, abrigado do vento, prometia sossego para as ovelhas e paz para a pastora que se preparava para recostar um pouco a silhueta magra e franzina, num penedo que aquecia, ao sol. Por entre o leve zumbido dos abelhões que começavam a aquecer as asas, o balido das ovelhas e dos borregos, os berros de algumas, poucas cabritas, sobressaiam os chocalhos e as campainhas, num tinir fino, afinado, como se fossem a filarmónica compassada da procissão que agora repousava os andores.
A paz daquela pintura durou poucos minutos. Luana ouviu um grito abafado, como que vindo de longe, mas ao mesmo tempo surgido debaixo dos seus pés. Sob a sua cabeça o Sol ocultava-se numa nuvem densa e a temperatura logo oscilou e desceu. O grito surdo e a nuvem gelaram, por segundos, o peito da pastora. A menina correu em direcção ao som que parecia aflito e suplicante. O cão, sempre atento e protector, correu na mesma direcção. Em poucos minutos, os dois estavam debruçados sobre o bordo de um enorme buraco, cavado no solo. Os olhos de pastora e cão espelhavam-se nos olhos tristes e aflitos de um animal que embora grande no tamanho se fazia perceber ser uma cria. O eco dos olhares era um silvo lancinante, parecia fender os céus e encolher o coração por dentro. Luana já mais houvera visto aquela espécie de animal. Algo entre um urso e um porco, com tamanho de ovelha, mas movimentos desajeitados de quem ainda não sabia andar convenientemente. Era um filhote indefeso, ia fenecer ali!
Teria escorregado pelo bordo do precipício e caído, alguns metros mais abaixo, num buraco com não mais que dois metros de diâmetro e três de profundidade. Impossível de transpor por qualquer outro animal e muito menos por um juvenil e inexperiente. O pobre gemia e gritava, amedrontado e com frio, quem sabe faminto. Nas costas de Luana, um rugido aterrador, como um trovão que cai sem intervalo de tempo entre o relâmpago e o ribombar do som, crescia de uma parede de pelo, de dentes, com uma boca feroz e negra. Zangão, o cão, sem pestanejar, ia lançar-se sobre o animal, em defesa incondicional de Luana. Felizmente que a comunicação entre os animais é mais eficaz do que entre os humanos. Um entendimento tácito trouxe acalmia ao quadro dramático que se pintava naquele vale. O animal parou o ataque, o cão sentou-se e o vale respirou fundo. Luana deixou escapar um pingo de xixi, na aflição do momento, mas acalmou e voltou, de novo, a sua atenção sobre a cria em perigo, o cão parecia ser uma brisa apaziguadora, um cimento de união de entendimentos, entre os vários personagens.
Junto do grande animal, atrás de Luana, por entre as patas grossas e poderosas, espreitava um outro, pelo tamanho, um irmão da mesma ninhada do que perigava no fundo do buraco. Sem margem para dúvida, tratar-se-ia de uma mãe com duas crias pequenas e uma delas tinha se precipitado no poço, que embora sem água se mostrava uma sepultura sem remédio e sem tecto. Mãe e cria olhavam-se com olhos húmidos de terror, de dor e de incerteza. A cria gemia e a mãe rugia de dorida. A dor de outrem pode doer-nos copiosamente. Os Céus pareciam curvar-se de tristezas. Luana chorava e o cão latia.
Passados os primeiros momentos daquele sopapo de realidade, Luana correu, até onde se tinha recostado anteriormente, para ir buscar o seu cajado e uma corda que trazia, sempre, consigo. Ser pastor não é ser ignorante. Luana tinha aprendido, com todos os pastores, que um pau e uma corda podem servir para solver a maioria dos sarilhos que assaltam um pastor na serra e salvar vidas. A serra tem de tudo em abundância, em tamanho e em fartura, e os perigos não lhe são excepção.
Sob o olhar de língua de fora e cabeça ao lado, de Zangão, o cão, e sob a agitação fremente de animal mãe das crias, Luana atou uma das pontas da corda a um pequeno carvalho e desceu, leve e firme, dentro do abismo, entre um latido (talvez receoso), do cão e um gemido aflito da cria aprisionada. Chegada ao fundo do poço, Luana logo foi derrubada pelo animal com o seu peso e falta de jeito juvenil. A emoção e o desespero dão, frequentemente, asneira. O Bicho pregou-lhe umas lambidelas e Luana percebeu que não haveria perigo. As crias não têm a mente poluída pela historia de inimizades entre o bicho homem e quase todos os outros bichos.
Luana atou a cria pela barriga, com a ponta da corda que lhe restava. Apressou-se a subir pela mesma corda, apoiando os pés nas paredes do poço. Era ágil e seu peso de princesa concorria para a facilidade da escalada. Depressa se viu na superfície. Ali reinava um silêncio de esperança e expectativa. Só o vento começava a uivar e a arrastar o cinzentão do céu, como se quisesse levar a todos para um mau fim. O sol tinha sido privado de ver a cena dramática, ocultado pelas nuvens. O frio só não era sentido porque os sentidos estavam apurados e ocupados na direcção da tentativa de salvamento.
Luana foi buscar força ao pequeno almoço que tinha comido, mas também a uma enorme vontade de preservar a vida do animal e atenuar a dor da mãe da cria. A dor de mãe é um unguento poderoso que nem todos aguentam. Depois de quase tudo ter que recomeçar várias vezes. Depois de animal Luana e Cão quase caírem dentro do poço novamente. Dado o peso do animal, e sem milagres conhecidos, o sucesso da tarefa não era fácil de explicar. Arranhados, cansados e moídos pelos tojos, pelas pedras, pelos medos, todos estavam sãos… mas será que salvos?
Um nevão começara, agora, a abater-se sobre o Vale. A neve caía como quem estende mantas sobre mantas. O rebanho enrolara-se em si mesmo, como um novelo de lã, para se proteger. O tear do instinto protector da vida é engenhoso no tecer. Os cordeiros no meio e as cabritas por fora. Zangão tinha-se abrigado sob uma rocha grande, nariz enfiado na outra ponta do cão.
Mãe e crias, aqueles estranhos, mas enormes animais, estavam agora deitadas, as crias mamavam sofregamente. Havia um quase ronronar de satisfação, no ar, só interrompido pelo tiritar de frio de Luana. Os seus ossos pareciam lenha seca a tiritar com o frio e abanados ao vento. A capa tinha ficado coberta, rapidamente, pela neve e era impossível encontra-la na brancura branca que tudo tornava perigosamente igual. Sem capa ninguém escapa. O frio era intenso e ameaçador à vida. Luana sentiu que sem abrigo, sem poder sair dali e com o nevão de proporções incertas, estavam reunidos os ingredientes para uma página negra de vários jornais. No seu peito de menina já lhe doía a dor de sua mãe. Sentia frio, medo. Das poucas forças, que lhe restavam, as maiores eram o desespero e o terror…
A mãe das crias, na sua aparente bestialidade, levantou-se, como uma bisarma, sobre Luana, escurecendo-lhe o coração e o céu. O Sol, escondido, tudo tornava pardacento. A certeza de voltar para casa, com o rebanho, parecia um mar de caravelas com o mastro quebrado e velas esfarrapadas, ao vento rijo e dolorosamente cortante. A boca do animal fechou-se sobre a as costas de Luana. O único grito que ia sair da sua boca sucumbiu na sua garganta que parecia apertada pelas garras da desesperança. A pastora sentiu os dentes, do grande animal, como farpas, trespassarem a camisola de lã e num ápice estava no ar e já aterrava, com delicadeza e doçura, entre as duas crias que logo voltaram a sorver leite das tetas da mãe, anódinas ao que se passava.
Exausta e quente, a pastorinha, com o coração a descer dos cento e quarenta por minuto para onde tinha acelerado, apagou-se dos sentidos, por entre sono, cansaço e o calor animal. Quando acordou percebeu que a cria que tinha caído no poço estava ferida numa pata. A sobrevivência estaria em perigo. Nem a cria conseguiria acompanhar a manada nem a mãe arredaria pé… morreriam desabrigados, num finamento lento e agonizante.
Luana, sem outro alento, voltou a dormitar. Quando acordou estava um dia já ensolarado. Os dias na serra podem parecer bipolares. O Sol, inclinado para poente (como quem vai dormir), dizia-lhe para voltar para casa e levar o rebanho. O Sol e os pastores aprendem a dialogar, desde pequeninos. Assobiou ao Zangão, o cão. Este organizou o rebanho e a procissão, sem padre e sem cruzes, que a vida é suficientemente dura para venerações à dor. Recomeçou o regresso ao templo… à casa dos pais, ao “Lararium” de todos os anjos, com a sinfonia de campainhas, e chocalhos, a marcar o compasso.
Pelo caminho, a pastora ia intrigada e absorta nos seus pensamentos. Quando acordara não vira sinais dos animais, nem feridos nem mortos. Teria sonhado?
A realidade é sempre questionável. Nunca deixemos de nos questionar sobre as nossas certezas.
Luana cresceu. Luana teve outros caminhos e outros sonhos, e pesadelos, e aventuras e foi mãe… e teve outros pesadelos e outros sonhos e muitos rebanhos de pensamentos.
Um dia, muitos anos depois, tinha então decorrido a tragédia dos incêndios de Outubro de 2017, Luana veio percorrer as serranias da sua juventude e dos seus rebanhos.
Sameice, Seia, Portugal (Fotografia de Bigorna) |
Num passeio pelo vale, Luana olhou incrédula. O fogo tinha posto a nu um quadro quase esquecido. Um enorme rochedo, em forma de animal, a amamentar duas crias, adornava a encosta, como se respirasse lenta e compassadamente, como se estivesse a aquecer-lhe a memória daquele dia gélido.
O fogo tinha desnudado um emaranhado de ruídos que lhe ocultavam a memória do salvamento ou do sonho...
A serra tem ventrículos espessos, como um coração forte, com aurículas vastas (átrios), onde cabem bons, grandes e altruístas sentimentos. Onde todos deveríamos poder aconchegar-nos, num Inverno qualquer.
Luana interrogava-se sobre que animais seriam aqueles… quem teria salvo quem? Mas isso pouco importa.
Ninguém sabe do que é capaz quando a dor esvoaça sobre o nosso ninho.
Bigorna (XII6023VII)*
*Escrevo em desacordo com o acordo vigente.
Pode ler-se, também, em (forjadobigorna.blogspot.pt)
Sonho
(Fotografia de Bigorna) |
Um Bocadinho…
Indulta a Tua Mente…
Pressão vertical.
(Fotografia de Bigorna) |
A Senhora Silva
(Fotografia de Bigorna) |
A Saudade é de Hoje
Bom dia Mundo
Pimenta no cu dos outros… (Série) Inspirado num poste sobre espera. A vida, se a observarmos, de todos os lados, e a conseguirmos ...