sexta-feira, 28 de julho de 2023

 Gosto, muito, de comer (ponto final)

Sempre que algumas pessoas “postam” imagens de “bons comeres”, aguçam-se me as pituitárias (vírgula)…
Lembra-me uma história que um médico (já ido), da nossa praça, muito bem contava.
(Ilustração de Bigorna)

Ria e contava que, tendo ido visitar um paciente a um lugarejo, depois de receitados os palavreados, as mezinhas e os impropérios, encontro, pela rua, um pobre diabo (que tinha fama de ter dado um quarto de volta a mais ao parafuso), e que, segurava o queixo e gemia dizendo:
- Ai dói o dente, dói o dente…
- Que tens tu Armando? – Perguntou o médico.
- (e o pobre diabo só gemia) – dói o dente, dói o dente…
- O “carvalho”! eu, na semana passada, também andei assim. Olha, fui para cima duma gaija nova… Passou-me logo TUDO!!!
Responde-lhe o Armando, retirando as mãos da cara e sorrindo com as pupilas brilhantes:
- Onde tá ela? Onde tá ela? Trá-la cá, trá-la CÁ!!!
Pois, fiquem a saber que eu, quando vejo esses “postes”, sobre “comidas por comer”, lembro-me sempre das dores de dentes do Armando. “Trá-la cá…”
Boas dores, para Todos!
Bigorna (XXVII6023VII)

segunda-feira, 24 de julho de 2023

 Porto no peito uma ânsia, talvez vã…

Cuido, em branca tela, de palavras escritas, pintar o trago amargo que tem o esvoaço poeirento dos meus caminhos de insucesso.

Caminho sob um complexo de ideias e uto

(fotografia de Bigorna)

pias que não consigo acobertar de fornix completo justo e perfeito. Em alto e largo, tudo o que penso fica sempre num sofrimento de alguma angústia, em um aperto que não permite às palavras serem maiores do que as sílabas que as suportam. Quanto afago as palavras, para que cabendo justas nos significados que lhe são lugar, sobram-lhe arestas que ferem, vértices que magoam, volumes que adensam o gosto ocre das frustrações.

Evapora, assim, da lua um paladar fermentado que se me adensa nas pituitárias. O Sol azeda-me nas tripas, faz-me gases, avilta-me o desassossego das noites.

Permaneço assim, calado, num acordo tácito.

No pórtico, de arco quebrado, a cimalha aponta o céu estrelado. Não há palavras que garantam o tamanho da imaginação, se ela quiser entrar no Templo. Fica o delubro sem porta e ventilado, assim, dispenso janelas e tecto. Sem cruzes que mais agrilhoem pensamentos e vontades, não ergo muros, nem paredes.

Olho as estrelas. Cabem todas, o pináculo da catedral não é empecilho ao riscar celeste dos astros. A cauda dos cometas não suja a sua alba grinalda… Passa, incólume, por nós, o universo inteiro, sem gritos e sem as opressões das desgraças.

Melhor assim. Não estrago… Cumpro o conselho avisado e simples:

Se nada de essencial ou agradável houveres a proferir… permanece em silêncio florir, pensa na morte, deixa o tempo porvir.

 Sonho

(por vezes até chove…)
Se me deixasse a fúria louca,
aquele querer em que dormia,
hoje, metia-te na minha boca,
hoje, almoçava-te até ser dia.
(Fotografia de Bigorna)

Sorvia-te entre delícias,
como quem mima e afaga,
como quem funde carícias,
como quem em bem se apaga.
Bigorna (XXIII6023VII)

sexta-feira, 21 de julho de 2023

 Hoje pisei uma bosta.

Não. Não foi a primeira vez que pisei uma bosta.
Quem caminha sabe que "shit happens".
(Fotografia de Bigorna)
Mal tinha eu entrado na bosta já a multidão, que frequentemente, na minha vida, sou os eus difíceis e rabugentos, se alarvava nos porquês e evitabilidades.
Como se não bastasse a bosta ser a bosta, o pé ser meu e o espaço e tempo, da bosta e do pé, terem coincidido, os nossos, todos, e de todo, insistiram e persistiram na bosta do lamento, como se amassar a bosta fosse a punição ideal...
Parei. Quebrei o ciclo da bosta e do amassar, olhei o visor da minha máquina fotográfica e percebi o efeito.
Mas, ou a bosta ou os eus continuam sem se pôr em acordo:
- terá a fotografia distraído o pé ou terá a bosta feito escorregar e feito o tropeço no disparador acontecer?
Bostas! Não vale a pena mexer mais, só suja e espalha o cheiro.
Bigorna (XX6023VII)

quarta-feira, 19 de julho de 2023

 ARISTIDES DE SOUSA MENDES

No Talmud poderá ler-se:  “Aquele que salvou uma vida, salvou o mundo inteiro”

Passam, hoje, 138 anos do nascimento de Aristides de Sousa Mendes. Em 1940, este Homem, ignorado pela história e pelo mediatismo, salvou da morte e do sofrimento atroz, milhares de Judeus. Algo que põe a Lista de Schindler num “tiket de multibanco”. Muitos, não só negam essas evidências como, não bastando, negam a existência das atrocidades perpetradas por Hitler e pela sua horda de cães raivosos.

(Fotografia de Bigorna)
Se perguntarem a gente “Chegada” à lata de mentir tão descaradamente, como se mentir e “limpar o mundo dos seres impuros” fosse o mesmo que refrescar a garganta ou cagar de pé, vão dizer-vos que foi tudo mentira.

Terão, esses “Chegados” à indecência da falta d
e honestidade intelectual, dificuldade em explicar porque terá este Homem – ARISTIDES DE SOUZA MENDES – tido a sua vida desgraçada (por um tacanho ditador), depois de passar vistos a gente que “fugia sem razão para fugir”. Mas isso nada interessa para quem o único interesse é um umbigo nauseabundo, feito de tripas e desperdício de cérebros.

Fica a minha homenagem possível a esse tipo de HOMENS. Homens que sabendo-se desgraçar a sua vida, não hesitam em salvar cada “Estrela do mar que encalha na praia, como sendo menos uma a fenecer”.

OBRIGADO

Bigorna (XIX6023VII)

 Voo…

Quero viajar na substância dos infinitos,

beber o sangue das luas.

Anseio correr no pó do universo e mastigar a essência dos gritos.

Quero ser vento soprado em verso,

gemer nos rodopios da sombra das dunas.

Quero ser todos os mitos.

(Fotografia de Bigorna)

 

Bigorna (XVIII6023VII)

 Moinhos novos, velhos ventos...

(Fotografia de Bigorna)
Modernos moinhos, do velho vento, onde se mói e desgasta o meu, o nosso, vetusto e curto tempo!
Ide moer os ventos idos.
Ide matar o morrido e moribundo estéril e capado pensamento!
Que, para ontem, esse morto intento, vos tenha fugido.
Eu, aqui gasto e nefasto, moído pela jovem idade que de mim fugiu, vos mando rodar, voar e moer para a mão que vos pariu.
Bigorna (XVI6023VI)

sexta-feira, 14 de julho de 2023

DIA DOS HOSPITAIS

(Rosa - Fotografia de Bigorna)
Diz a Holy Wikipedia que hoje, 14 de Julho, é dia Internacional dos Hospitais. Para muitos, uma espécie de limbo, de purgatório, onde se expiam os pecados, quando não dos próprios, dos seus pais ou avós, estes campos de refugiados do sossego e da saúde (entenda-se de quem o sossego e a saúde se refugiaram, escondidos), são a vida de grande parte da vida. Uns porque doentes, mas outros porque neles trocam a existência por valores bancários, são locais de peregrinação quase eterna. Só quem os habita nos gemidos da noite e nas candeias dos enfermeiros percebe o que é o pranto e o ranger de dentes… Ali, de enfermo e de estafermo, todos têm um pouco. A todos, os que por lá estão, a todos os que para lá vão e todos os que os inventaram, eu brindo com a rosa que ontem, entre o sol e a lente da minha máquina fotográfica, gritou de existência… apenas. As melhoras para todos!


Bigorna (IV6023VII) 

quinta-feira, 13 de julho de 2023

 Há uma fatalidade em nós… se não matarmos, morremos. *


Há árvores que treinam a vida inteira, ano após ano, para estarem desnudas. Não adiante tentar entender tudo nas árvores nem nas árvores todas. Deixemos essa arrogância para os maus professores, aqueles que tudo sabem, tudo ensinam e nada aprendem.
Não sei se há arvores com vida eterna, mas existem, certamente, sem certeza alguma, árvores cuja existência se faz eterna.
Quando uma árvore, depois de treinar toda a sua vida para se despir, despe o seu último fato de folhas, isso revela-se um facto admirável. Essa árvore
(Fotografia de Bigorna)


transforma-se numa escultura que homenageia a semente que já ninguém recorda, que venera todas as árvores que consigo conviveram, nos abraços de ramos, de ventos, de cheiros, de pólenes, de sombras, de frescuras, frutos e outras farturas.
O sol, que outrora passou por ela e com ela fez sexo em suas folhas, excitando cada molécula de clorofila, fazendo mel e oxigénio e abelhas, num turbilhão de gemidos surdos, mas admiravelmente vastos, namora agora a sua silhueta, elevando as suas formas vetustas e perfeitas como nunca. E juntos brilham como nunca antes.
E a escultura ali se deixa ficar, como uma sombra que mostra a luz, como um silencio que revela o som, como um mistério que revela a vida.
Passam cucos, corujas, carriças e corvos. A todos, a árvore, dá um braço, a todos se propõe, ainda, ser regaço e fuste e mão que afaga. E passam vegans, empertigados em seus passos de protectores do mundo. Não comem carnes porque os animais sofrem, devoram ervas porque as não ouvem gemer, porque seus olhos cegos, seus ouvidos surdos e suas mentes indigentes, coitadas, nada querem perceber… Comam, mas é… Pedra que rima na mesma.
Há uma fatalidade na mesma fatalidade, morreremos mesmo matando.
Pelo caminho, bom dia irmã árvore, olá senhor coelho, como passou? Sua vaca.
*devo o respeito pela ideia ao Ilustríssimo Senhor Doutor Lima de Faria (de Cantanhede para o Mundo), que as árvores se curvem no seu caminho, em vénias de sabedoria.

Bigorna (XIII6023VII)
(fotografia de Bigorna)

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Sonhos de Pedra

A serrania de serras da minha terra é grande, larga. Nela se espessam os ventrículos e esticam os átrios do coração dos beirões, tornando-os gente tão fria e dura quanto generosa e acolhedora, se a natureza agreste os põe à prova e quando é necessário sermos solidários.

Luana, pastora deste o ventre de sua mãe, pastora como sua avó, e a avó de sua avó, saíra de casa noite escuro, madrugada ainda longe, com as estrelas a anunciarem que o Sol ainda tardaria para aparecer atrás do grande monte, pronto a iluminar o caminho e fundir o gelo que a noite fria continuava a colocar sobre os rebentos mais tenros das ervas e do mato para as ovelhas apetecido.

O rebanho seguia-lhe o rasto, num compasso demorado, entre bocadadas nas pontas de mato e o passo curto dos borreguitos ainda de tenra idade. Mais atrás, com baforadas de vapor, como um fumo que lhe saía do focinho, caminhava pachorrento, Zangão, o Cão da Serra, de pelo comprido, cor de mel. Era uma procissão repetida, plena de religião, sem religiosidade pia e benta de santos e deuses, mas uma religião de pertença e união intangíveis. Pastora, rebanho, cão e natureza, numa comum união onde o verbo religar se conjugava na perfeição dos universos.

O Rei Sol espreguiçou o seu olho mais alto, esticando a pálpebra até ao tecto e espreitou por trás do penedio. Estava na hora de iluminar os caminhos dos mundos, dar ervas às ovelhas, acordar os pássaros e as abelhas que as flores já clamavam por elas. Porem era Inverno, duro, e o senhor cinzentão céu fazia-se adivinhar, carrancudo e severo.

O vale, abrigado do vento, prometia sossego para as ovelhas e paz para a pastora que se preparava para recostar um pouco a silhueta magra e franzina, num penedo que aquecia, ao sol. Por entre o leve zumbido dos abelhões que começavam a aquecer as asas, o balido das ovelhas e dos borregos, os berros de algumas, poucas cabritas, sobressaiam os chocalhos e as campainhas, num tinir fino, afinado, como se fossem a filarmónica compassada da procissão que agora repousava os andores.

A paz daquela pintura durou poucos minutos. Luana ouviu um grito abafado, como que vindo de longe, mas ao mesmo tempo surgido debaixo dos seus pés. Sob a sua cabeça o Sol ocultava-se numa nuvem densa e a temperatura logo oscilou e desceu. O grito surdo e a nuvem gelaram, por segundos, o peito da pastora. A menina correu em direcção ao som que parecia aflito e suplicante. O cão, sempre atento e protector, correu na mesma direcção. Em poucos minutos, os dois estavam debruçados sobre o bordo de um enorme buraco, cavado no solo. Os olhos de pastora e cão espelhavam-se nos olhos tristes e aflitos de um animal que embora grande no tamanho se fazia perceber ser uma cria. O eco dos olhares era um silvo lancinante, parecia fender os céus e encolher o coração por dentro. Luana já mais houvera visto aquela espécie de animal. Algo entre um urso e um porco, com tamanho de ovelha, mas movimentos desajeitados de quem ainda não sabia andar convenientemente. Era um filhote indefeso, ia fenecer ali!

Teria escorregado pelo bordo do precipício e caído, alguns metros mais abaixo, num buraco com não mais que dois metros de diâmetro e três de profundidade. Impossível de transpor por qualquer outro animal e muito menos por um juvenil e inexperiente. O pobre gemia e gritava, amedrontado e com frio, quem sabe faminto. Nas costas de Luana, um rugido aterrador, como um trovão que cai sem intervalo de tempo entre o relâmpago e o ribombar do som, crescia de uma parede de pelo, de dentes, com uma boca feroz e negra. Zangão, o cão, sem pestanejar, ia lançar-se sobre o animal, em defesa incondicional de Luana. Felizmente que a comunicação entre os animais é mais eficaz do que entre os humanos. Um entendimento tácito trouxe acalmia ao quadro dramático que se pintava naquele vale. O animal parou o ataque, o cão sentou-se e o vale respirou fundo. Luana deixou escapar um pingo de xixi, na aflição do momento, mas acalmou e voltou, de novo, a sua atenção sobre a cria em perigo, o cão parecia ser uma brisa apaziguadora, um cimento de união de entendimentos, entre os vários personagens.

Junto do grande animal, atrás de Luana, por entre as patas grossas e poderosas, espreitava um outro, pelo tamanho, um irmão da mesma ninhada do que perigava no fundo do buraco. Sem margem para dúvida, tratar-se-ia de uma mãe com duas crias pequenas e uma delas tinha se precipitado no poço, que embora sem água se mostrava uma sepultura sem remédio e sem tecto. Mãe e cria olhavam-se com olhos húmidos de terror, de dor e de incerteza. A cria gemia e a mãe rugia de dorida. A dor de outrem pode doer-nos copiosamente. Os Céus pareciam curvar-se de tristezas. Luana chorava e o cão latia.

Passados os primeiros momentos daquele sopapo de realidade, Luana correu, até onde se tinha recostado anteriormente, para ir buscar o seu cajado e uma corda que trazia, sempre, consigo. Ser pastor não é ser ignorante. Luana tinha aprendido, com todos os pastores, que um pau e uma corda podem servir para solver a maioria dos sarilhos que assaltam um pastor na serra e salvar vidas. A serra tem de tudo em abundância, em tamanho e em fartura, e os perigos não lhe são excepção.

Sob o olhar de língua de fora e cabeça ao lado, de Zangão, o cão, e sob a agitação fremente de animal mãe das crias, Luana atou uma das pontas da corda a um pequeno carvalho e desceu, leve e firme, dentro do abismo, entre um latido (talvez receoso), do cão e um gemido aflito da cria aprisionada. Chegada ao fundo do poço, Luana logo foi derrubada pelo animal com o seu peso e falta de jeito juvenil. A emoção e o desespero dão, frequentemente, asneira.  O Bicho pregou-lhe umas lambidelas e Luana percebeu que não haveria perigo. As crias não têm a mente poluída pela historia de inimizades entre o bicho homem e quase todos os outros bichos.

Luana atou a cria pela barriga, com a ponta da corda que lhe restava. Apressou-se a subir pela mesma corda, apoiando os pés nas paredes do poço. Era ágil e seu peso de princesa concorria para a facilidade da escalada. Depressa se viu na superfície. Ali reinava um silêncio de esperança e expectativa. Só o vento começava a uivar e a arrastar o cinzentão do céu, como se quisesse levar a todos para um mau fim. O sol tinha sido privado de ver a cena dramática, ocultado pelas nuvens. O frio só não era sentido porque os sentidos estavam apurados e ocupados na direcção da tentativa de salvamento.

Luana foi buscar força ao pequeno almoço que tinha comido, mas também a uma enorme vontade de preservar a vida do animal e atenuar a dor da mãe da cria. A dor de mãe é um unguento poderoso que nem todos aguentam. Depois de quase tudo ter que recomeçar várias vezes. Depois de animal Luana e Cão quase caírem dentro do poço novamente. Dado o peso do animal, e sem milagres conhecidos, o sucesso da tarefa não era fácil de explicar. Arranhados, cansados e moídos pelos tojos, pelas pedras, pelos medos, todos estavam sãos… mas será que salvos?

Um nevão começara, agora, a abater-se sobre o Vale. A neve caía como quem estende mantas sobre mantas. O rebanho enrolara-se em si mesmo, como um novelo de lã, para se proteger. O tear do instinto protector da vida é engenhoso no tecer. Os cordeiros no meio e as cabritas por fora. Zangão tinha-se abrigado sob uma rocha grande, nariz enfiado na outra ponta do cão.

Mãe e crias, aqueles estranhos, mas enormes animais, estavam agora deitadas, as crias mamavam sofregamente. Havia um quase ronronar de satisfação, no ar, só interrompido pelo tiritar de frio de Luana. Os seus ossos pareciam lenha seca a tiritar com o frio e abanados ao vento. A capa tinha ficado coberta, rapidamente, pela neve e era impossível encontra-la na brancura branca que tudo tornava perigosamente igual. Sem capa ninguém escapa. O frio era intenso e ameaçador à vida. Luana sentiu que sem abrigo, sem poder sair dali e com o nevão de proporções incertas, estavam reunidos os ingredientes para uma página negra de vários jornais. No seu peito de menina já lhe doía a dor de sua mãe. Sentia frio, medo. Das poucas forças, que lhe restavam, as maiores eram o desespero e o terror…

A mãe das crias, na sua aparente bestialidade, levantou-se, como uma bisarma, sobre Luana, escurecendo-lhe o coração e o céu. O Sol, escondido, tudo tornava pardacento. A certeza de voltar para casa, com o rebanho, parecia um mar de caravelas com o mastro quebrado e velas esfarrapadas, ao vento rijo e dolorosamente cortante. A boca do animal fechou-se sobre a as costas de Luana. O único grito que ia sair da sua boca sucumbiu na sua garganta que parecia apertada pelas garras da desesperança. A pastora sentiu os dentes, do grande animal, como farpas, trespassarem a camisola de lã e num ápice estava no ar e já aterrava, com delicadeza e doçura, entre as duas crias que logo voltaram a sorver leite das tetas da mãe, anódinas ao que se passava.

Exausta e quente, a pastorinha, com o coração a descer dos cento e quarenta por minuto para onde tinha acelerado, apagou-se dos sentidos, por entre sono, cansaço e o calor animal. Quando acordou percebeu que a cria que tinha caído no poço estava ferida numa pata. A sobrevivência estaria em perigo. Nem a cria conseguiria acompanhar a manada nem a mãe arredaria pé… morreriam desabrigados, num finamento lento e agonizante.

Luana, sem outro alento, voltou a dormitar. Quando acordou estava um dia já ensolarado. Os dias na serra podem parecer bipolares. O Sol, inclinado para poente (como quem vai dormir), dizia-lhe para voltar para casa e levar o rebanho. O Sol e os pastores aprendem a dialogar, desde pequeninos. Assobiou ao Zangão, o cão. Este organizou o rebanho e a procissão, sem padre e sem cruzes, que a vida é suficientemente dura para venerações à dor. Recomeçou o regresso ao templo… à casa dos pais, ao “Lararium” de todos os anjos, com a sinfonia de campainhas, e chocalhos, a marcar o compasso.

Pelo caminho, a pastora ia intrigada e absorta nos seus pensamentos. Quando acordara não vira sinais dos animais, nem feridos nem mortos. Teria sonhado?

A realidade é sempre questionável. Nunca deixemos de nos questionar sobre as nossas certezas.

Luana cresceu. Luana teve outros caminhos e outros sonhos, e pesadelos, e aventuras e foi mãe… e teve outros pesadelos e outros sonhos e muitos rebanhos de pensamentos.

Um dia, muitos anos depois, tinha então decorrido a tragédia dos incêndios de Outubro de 2017, Luana veio percorrer as serranias da sua juventude e dos seus rebanhos.

Sameice, Seia, Portugal (Fotografia de Bigorna)

A serra estava careca, como se um tratamento quimioterápico lhe tivesse provocado uma violenta alopecia. Havia sítios que não se reconheciam a eles próprios. O Sol e a Lua passavam por ali como estranhos, numa estranha sensação de dormência e abandono. Ainda cheirava a desespero. O desespero é um cheiro difícil de desentranhar.

Num passeio pelo vale, Luana olhou incrédula. O fogo tinha posto a nu um quadro quase esquecido. Um enorme rochedo, em forma de animal, a amamentar duas crias, adornava a encosta, como se respirasse lenta e compassadamente, como se estivesse a aquecer-lhe a memória daquele dia gélido.

O fogo tinha desnudado um emaranhado de ruídos que lhe ocultavam a memória do salvamento ou do sonho...

A serra tem ventrículos espessos, como um coração forte, com aurículas vastas (átrios), onde cabem bons, grandes e altruístas sentimentos. Onde todos deveríamos poder aconchegar-nos, num Inverno qualquer.

Luana interrogava-se sobre que animais seriam aqueles… quem teria salvo quem? Mas isso pouco importa.

Ninguém sabe do que é capaz quando a dor esvoaça sobre o nosso ninho.

 

Bigorna (XII6023VII)*

*Escrevo em desacordo com o acordo vigente.

Pode ler-se, também, em (forjadobigorna.blogspot.pt)

 Sonho

Sonho embevecido, como se hoje fosse a madrugada do silêncio.
Sonho que as velhas alcoviteiras, as mais viperinas e rançosas da língua, as mais amargas de pensamento e mofentas do baixo ventre, riem descrentes, ao vento e dizem:
- Lembram-se comadres, do tempo
(Fotografia de Bigorna)

em que a humanidade era uma cloaca pestilenta de maldade e azedume, de quando as pessoas que cometiam erros eram enviadas para prisões, umas gaiolas de tortura?
- Acabaram. Fecharam. Foram convertidas em altares de cultura!
VIVA! VIVA! VIVAAAAA!
Eu tenho um sonho.
Bigorna
(Fotografia de Bigorna)

 Um Bocadinho…


E eu que só queria um bocadinho.
Um bocadinho, mesmo… e saboreado em pequenas doses, degustado como se degustasse o espaço intermédio entre um segundo e o outro, percorrido pelo ponteiro, num relógio com mostrador minúsculo.
(Fotografia de Bigorna)

Eu queria apenas um bocadinho, era mesmo só um bocadinho... ahhh!
Nada de grandes barrigadas, nem a boca cheia… saboreado sem dentes, por entre os intervalos das papilas gustativas. Mas nunca sem barriga nem ausência de boca toda. Pois que para andar com os pés não necessitamos de descartar as mãos nem os dedos.
E os dedos? Ai os dedos… só um toquezinho.
Era só um bocadinho.
Tão pouco que o sabor se pode, até, confundir com o cheiro, mas tem que ter cheiro ao que é, para se poder comer pelo nariz, como se faz para sentir o ir e vir da maré, como se passando mais perto do cérebro enchesse o coração e ficasse… a marinar, a percorrer cada recanto do aparelho cinestésico. Qual sopro de fazer vidas.
Era um pouquinho só… para preencher todo o tudo que possa rimar-vos com ão, mesmo o mais pequenino…
Assim, como o fino friso da lua a ir para Nova… um pouquinho, delicado e sublime, saboreado ao som do último pingo de orvalho evaporado, precipitado sobre um cristal de vento cósmico em turbilhão.
Apenas um ténue gemido caído do bater de asas silencioso de uma coruja em voo noturno e perdido… uma pluma, minúscula de pena branca, levada pela neblina.
Era só… mesmo só… um bocadinho.
Obrigado

 Indulta a Tua Mente…

O espaço parece grande e o tempo imensurável.
(Fotografia de Bigorna)
Ficamos com a ideia, pequena e comezinha, de que somos capazes de meter o espaço na cabeça durante todo o tempo.
Estultos. Nem o espaço cabe em cabeça alguma nem o tempo que temos é mais do que um flash quase imperceptível. Já foi…
Vivemos assim, na bulina das ilusões débeis, baiados pelas margens ósseas da nossa caixa craniana, cansados dos milésimos de segundo geológicos e astronómicos que nos cabem em existência.
Somos menos que minúsculos parasitas dos testículos de uma pulga que tenta pular para o dorso de um galgo que corre, anódino, em torno do Sol…. Rodopiando sobre nós mesmos, a contar Pores-do-Sol.
E, no entanto, nesta pressa de sermos desgraçadamente miseráveis, continuamos a fabricar um sistema penal em que adoramos vingar-nos com o recurso a penas de prisão. Sim, isso não é justiça, é vingança
disfarçada de pequenez de ideias. Até acredito que, para alguns, se as ideias crescessem e a inteligência lhes permitisse, a vingança ainda seria mais e mais e mais atroz.
Sou pelos indultos, todos, e mais dois, três, milhões de pares de botas. Se Vem o Papa e são as Jornadas da Juventude, dê-se indultos. Mas, se o Indulto é bom, que seja para todas as idades.
Caros Políticos, Caros Papas, Caros Carcereiro e “Carceristas”, Caros Jovens, se o Indulto não poder ser para todos, que seja, generosa e preferencialmente para os mais Velhos. Dê-se, aos Jovens, a oportunidade de serem generosos e de abdicarem em proveito de outrem. Bem, talvez não sejam tão generosos assim.
O que dirá uma sociedade extraterrestre sobre uma sociedade que deixa os Velhos na prisão e indulta os jovens?
E, ainda sobre esta coisa do espaço e do tempo… Sobre esta grandeza da nossa pouca visão:
- Quantos Pores-do-Sol vais ver durante uma vida inteira? Quantos Pores-do-Sol existirão durante toda a vida de um Sol?
Quantos Pores-do-Sol podes impedir de contemplar, quando encarceras alguém?
Desejo-te um bom Pôr-do-Sol.
Bigorna (VII6023VI)
(Fotografia de Bigorna)

 Pressão vertical.

Vivo sob tensão, e não sou o único, pelo menos aqui. Há poucos dias recolhi um gatinho da rua, parecia ter tido dono, percebia-se pelo trato fino com que ronronava quando lhe anuncia
(Fotografia de Bigorna)

va a minha vontade de votar em si e na sua ida lá para a casa. Fazia comentários sobre quase tudo o que eu fazia e até sobre as pessoas que passavam pelo local onde se encontrava a atravessar o seu longo abandono, os seus dias de rua. Dizia que lia resmas de livros, chegando a ler três ao mesmo tempo, um com cada olho, e outros tantos enquanto dormia. Bufas oníricas e delírios recessos…
Este gatinho, chegado a casa, mostrou-se um dependente de atenção. Ciumento, birrento, caprichoso, quando as coisas lhe não correm de feição faz de tudo para chamar a atenção sobre si, mostra a unhas e encarrapita-se em tudo o que é púlpito, palco e tripé de microfone.
Eu, pelo contrário, sinto pressão quando a atenção sobre mim é grande, tento disfarçar, abano-me como posso e, em tempos idos até cheguei a “tintar” medidas vastas para me acalmar.
Sempre que a Atenção me pressiona sinto que a minha tensão tende a dobrar. Nunca senti a minha tensão a baixar, a baixar, mesmo quando a pressão da atenção sobre mim se revolta. Também nunca me aconteceu cair mal sobre moscatel algum. Ainda bem que me deixei de estar nas tintas para essas cenas.
Tenho medo que a pressão vertical dê comigo a ser solidário com a horizontalidade do nível térreo ou que isso me leve a tecer piadas de mau gosto, em especial sobre a suposta vontade dos que não se sentem substancialmente pressionados pelas quebras de tensão que a falta de atenção me comicha. Ficam a saber que ainda posso fanicar mais vezes (ponto final).
Bigorna (VI6023VII)
(fotografia de Bigorna)

 A Senhora Silva

O Senhor Sol, às vezes, é só e apenas o Senhor Sol…
A Senhora Silva, por vezes, quase sempre, é mais uma Senhora Silva, muitas vezes indesejada, outras tantas cobiçada, mas quase sempre em segredos.
(Fotografia de Bigorna)
Se ignora o desejo é mágoa, se agarra arranha e o desejo ferido fere o caminheiro que, incauto, na voragem de vereda lhe não desvenda o ensejo.
Mas a Senhora Silva, no namoro morno do entardecer, deixa o Senhor Sol babado. O céu em ternos amassos, com o mar em fundo, bramam-se de prazeres etéreos e lassos…
Escorre do arranhão lágrima encarnada, de sangue e dor forjada, entre um gemido e um gutural espasmo.
Estavas aí? Senhora Silva… Porra que me piquei!
Bigorna (V6023VII)
(Fotografia de Bigorna

 A Saudade é de Hoje

A saudade é de hoje,
mas há muito em mi
(Fotografia de Bigorna)

m se demora,
mesmo que a memória a leve para longe,
porque a dor que eu sinto é aqui e agora.
Doem-me todas as vontades
e por elas me escorrem lágrimas.
Vou embora de mim mesmo,
parto, largo longe, nas mais frustrantes verdades.
A saudade que sinto é de hoje
A dor em mim se queda e demora.
O motivo é longínquo e antigo,
mas a dor é aqui, é agora.
Bigorna (III6023VII)
(Fotografia de Bigorna)

domingo, 2 de julho de 2023


 Bom dia Mundo


A crise habitacional não é uma coisa nova, mas o mundo da imagem, a era da mediatização, do mundano e do embrutecimento humano acrescentam-lhe volume. O Tudo em 1 nos produtos de higiene é uma novidade, mas no mundo são tão antigos quanto o enxofre e as trevas.
(Fotografia de Bigorna)



A dificuldade em ter habitação, condigna, a preço justo, sustentável, parece querer contaminar outros sectores ou ser contaminada por eles. Desde o sector energético às infraestruturas, os ministérios são assolados pelo problema, numa linha que parece contínua, sem início e sem fim, sem aparência biunívoca e crescendo em profundidade e em altura, é um gigante velho, meio adormecido, com raízes na paz podre dos cemitérios da fome de poder.

As ideologias políticas tanto os produzem quanto se servem deles (dos problemas). Não raro surgem soluções para as quais urge inventar problemas.

Da esquerda à direita, com passagens pelo “branco mais branco não há” do Liberalismo e do Neo Liberalismo, são propagandeadas soluções. Nos extremos, uns prometem camisas encarnadas e outros camisas negras (fazem é questão de ocultar que a cor é um pormenor, o problema é serem TODAS camisas de forças).

O conflito pode parecer apenas rumorejante, mas a sua latência freme sob os nossos pés.

Os pardais (Passer domésticus) e as carriças (Troglodytes troglodytes), espreitam a oportunidade que um qualquer motivo (um tiro furtivo), possa justificar manifestações volumosas, esvoaçares descompassados, politicas de bando…

A comunicação social está à espreita, como se fossem gaios (Garrulos Glandarios), a carniça há de chegar. Não tardarão a chegar as pegas rabudas (Pica pica) e os corvos (Corvus corvax). Todos juntos, desencadearão pilhagens e desordem. Juntam-se os cães com os lobos e o mal será das ovelhas.

Os abutres (Chegam disfarçados), virão sob o capote de uma falsa moral pardacenta, para prometer ordem. Trarão, na frente uma cruz, não faltarão bispos sob pálios pálidos e pios (anunciando perdões para pecados ainda não cometidos e infernos, nos quais são e sempre foram especialistas).

Nunca nada está tão mal que não possa piorar.

Bom Domingo

Bigorna (II6023VII)

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