segunda-feira, 29 de maio de 2023

 Não Há Palavras

 

Uma folha branca é um poema inacabado.

Cabe, nela, inteira e sem flores, toda a minha e a tua infância.

Letra a letra, em caligrafia de escola primária,

como quem tange a música de um fado.

(Fotografia de Bigorna)
Numa outra estrofe, escrita com as letras furtadas a uma canja de galinha,

descrevem-se as saudades, os pores-do-sol… a dor da distância.

Em uma e outra e outra linha,

desenha-se, a sangue, escorrido, cada joelho esfolado...

 

Há, também, lágrimas, para esborratar a tinta.

Uma folha branca é um poema, inacabado,

e o borrão é o que melhor o pinta,

é a melhor imagem do certo e do errado,

é a marca indelével e distinta de um lápis magoado.

 

E que palavras doridas pode, um lápis de bico sofrido, gemer...

Numa página em branco podem escrever-se mil cacos de um coração partido,

de uma infância parida por cesariana,

de uma barriga qualquer...

Numa Família Cigana…

 

Sem brilho e sem vontade,

podemos usar todas as palavras que saibamos escrever,

repeti-las e reinventá-las, abusar delas, riscá-las e grifá-las e,

antes de as escrever apalpá-las…

que, ainda assim, ficará, sempre, sempre, sempre, tudo por dizer...

           (Bigorna)

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