quarta-feira, 10 de maio de 2023

País de “fingidores”

 


Enquanto os pobres e desgraçados dos governados vão “fingido dores verdadeiras”, os governantes vão fingindo encenações, comédias e dramas. As tragédias ficam para os que se passeiam pelas grandes superfícies e comem com os olhos “um caldo de lágrimas antigas” (António Arnaut in poema Os Meus Heróis), para os que fazem origami nos papelões para se cobrirem com lençóis a fingir, para os que olham para os seus recibos de vencimento e fingem que o patrão se enganou e lhe entregou os descontos em vez do ordenado (não podem fingir que trabalham ou enganam o patrão, porque isso não está no guião).

São tradições antigas: “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente” (Pessoa).

É outro F a acrescentar A “Fátima”, “Futebol” e “Fado”. E ainda há o “F” de “fecundados” com tanto fingimento.

Os comentadores televisados e jornaleiros fingem que fazem comentários em mote próprio, os donos da comunicação social fingem que ninguém lhes encomenda as perguntas – Excepção feita a um repórter que, ontem, em Espanha (enquanto, por lá, se fingia que o papel desempenhado pelo Senhor Secretário Geral da ONU está a ser bem representado e se brincava às condecorações e homenagens), fez uma pergunta, ao Senhor Presidente da República, sobre as relações entre este e o Senhor Primeiro Ministro. Claro que esta pergunta, feita no estrangeiro e no contexto em que foi feita, só pode ser uma curiosidade pia do jornalista que a fez. Fez esta pergunta como poderia ter perguntado se o Senhor Presidente lavou as mãos e os dentinhos pela manhã ou se estava a usar cuecas fio dental ou se ia comer um gelado com sabor a (…), fica o espaço para o leitor preencher e contribuir (agora finjam que não têm ideias!). Trivialidades, que no teatro são mais conhecidas por “buchas” (com mais ou menos qualidade conforme a qualidade dos actores – no caso percebem-se consentâneas com a opereta em tournée, qualidade não duvidosa a menos que finjamos o contrário).

(Desenho, aldrabado, por Bigorna)

Depois ainda há os que fingem que não fingem e os que fingem demonstrar, no seu pensamento, que o direito ao fingimento é só para alguns. Por exemplo, o Senhor Ministro das infraestruturas, segundo os comentadores, fingiu a sua demissão. Também, segundo os mesmos, o Senhor Primeiro Ministro fingiu que ele não fingia, fingiu-se ofendido e recusou o pedido. A oposição fingiu que estas encenações são uma novidade, finge que finge bem para tentar disfarçar a “canastrice” e finge que acredita que aos outros não é permitido fingir, numa espécie de: “enganarem-nos a nós que vínhamos aqui para os enganarmos a eles…”. E fingem-se de amuados, mas como o gado muar é difícil de imitar, fica o fingimento mal fingido.

O Senhor Presidente, que não finge, fez o papel que sempre fez (como se proferiria em linguagem dramática, declamou, que podia demitir, que podia dissolver, que podia mandar descer o pano, apagar as luzes, desligar o som e devolver os bilhetes aos espectadores). Mas nada aconteceu. No Teatro é assim.

Nós fingimos que não acreditamos nisto.

Os Leitores fingem que isto faz sentido. Obrigado (com vénia teatral à boca de cena).

Eu finjo que isto tem graça para não disfarçar a falta de qualidade do texto e do contexto, e para não chorar.

Finjamos todos! E fujamos! Antes que nos obriguem a bater palmas ou a comer algum gelado com sabor a isto tudo (camadas…).

(daqui a uns dias este texto não faz qualquer sentido, a menos que nos lembremos que isto pode ser só uma versão remasterizada da “Alegoria da Caverna”, em Portugal contemporâneo, a “Paródia do Antro”)

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