O Gato do João dos Vais
Existe um lugar, pertencente à freguesia de Lagos da Beira e Lajeosa (próximo de um povoado com o nome de Chamusca da Beira), onde existia uma antiga Padaria: a Padaria das Prairas.
Durante décadas, do século XX, ali se cozia pão, amassado com as mãos, calejadas, as mesmas mãos que lançavam o grão à terra, as mesmas mãos que os chãos pedregosos e duros cavavam. As mesmas mãos que alimentavam, a lenha (rachada à mão), os quentes fornos, nas horas em que o sol dormia e deixava, no seu lugar, a Lua, vendo os namorados beijar, escondidos, e ouvindo os gemidos de desejos negados e reprimidos. Mas desejos bem transpirados e orvalhados, evaporados em segredos.
Contava-me, minha avó, uma das vendedeiras de pão, da dita padaria, uma estória. As estórias repetidas, das avós, acompanham, bem, com sabor a pão torrado nas brasas, com azeite no lugar da manteiga e umas gotas de vinagre de vinho tinto. As estórias deixam de ser estórias só de palavras planas e sem cheiro ou sabor. As estórias sabem a regaço de avós, sabem à infância, e a vento uivante nas frestas mal jungidas das janelas velhas.
Nunca olho, do outro lado do vale, para a padaria das Prairas (agora só o seu lugar geográfico), sem sentir o sabor do pão com azeite e vinagre e sem o cheiro do avental da minha avó. Nem sempre conseguimos perceber a matéria de que somos feitos. Quando abrimos as caixas das memórias, os nossos computadores mais antigos e genuínos, eles mostram-nos que o conhecimento é feito de sentidos. Feito do espinho no pé, da unha rebentada na raiz da árvore do caminho, da vespa que picou e da cobra que nos assustou e só queria fugir e esconder-se.
Contava, então, com sorrisos marotos (que me fez tão bem herdar dela), que por ali havia um célebre gato malhado e gatuno. Todos os gatos das histórias da minha avó eram malhados e gatunos, mesmo que nunca tivessem roubado nada a ninguém. Aquele é o gato de um tal João dos Vais e devia ser tão irreverente quanto o dono. A verdade é que um gato deve ser feito de irreverências. Se um gato não for insistentemente teimoso e irreverente, não presta para ser gato. Melhor seria que fosse cão.
Esse gato, que durante o dia ou dormia ou desaparecia dos olhares, sistemática e exasperantemente, roubava pão ao padeiro, durante a noite. Entre um raer transpirado do forno quente, entre um tender da massa levedada ou entre o tirar e o meter do pão no forno, o gato lá se abarbatava com um pãozinho. Ágil e matreiro, de unha bem afiada e camuflado a preceito, o Gato do João dos Vais lá se ia safando. Nos intervalos ainda arreliava os mochos que lhe imitavam o miar.
Dia após dia, noite após noite, Lua após Lua… O Gato ia acumulando iras e feles nos maus fígados do padeiro.
Zás, catrapús, pim… Um dia, com mais agilidade e menos cachaça, a coisa deu-se:
O Padeiro apanhou o ladrão em flagrante delito. O pobre do bichano tentou manobras de evasão. Tentou filar a unha, mas sentiu que não devia ferir as mãos indispensáveis do padeiro. Ainda pediu clemência… bufou impropérios (para quem não sabe, o bufar dos gatos não é mais do que uma tentativa de palavrar calão e vernáculo contido pela educação conservadora das mães gatas – o Fsssss é uma emenda de palavrão proibido e apetecido). Também há, em versões mais modernistas, uma provável dislexia incurável, mas o f, para começo da palavra, não engana.
Tunga! O padeiro filou e o pobre do bichano acabou detido e castigado sem julgamento, à boa maneira dos tempos da outra senhora.
Apareceu, o pobre bichano, com ar de bem morto, pendurado num mastro, com pregão e baraço:
Eu sou o gato do João dos Vais, E esta noite andei a trote.
Por causa de dez Reis de pão,
Deram-me cabo do fagote.
A história não acaba aqui.
Tinha o Padeiro uma linda filha, linda como todas as filhas. Vendo, ela, o gatinho pagando tão duras penas, logo o libertou da forca e o escondeu bem longe de olhares. Ficou o Padeiro com o fígado sossegado, mas os problemas não acabaram. Se a coisa pode piorar… piora. Se pão de pobre, quando cai, cai sempre com a manteiga para baixo, vida de padeiro pobre, arde nas brasas do forno.
Não tardou que uma praga de ratos roubasse mais pão que o Gato Ladrão do João dos Vais.
A menina, ao aperceber-se de tamanha tragédia, contou ao Padeiro que, lá na escola da aldeia, a professora lhes tinha falado da antiga ligação entre os Faraós e os gatos, no Antigo Egipto. E que os gatos caçavam ratos… e que três ao prato… e coisa e tal…
Pai, Padeiro arreliado e de maus fígados, não é um ser sem coração. De imediato percebeu a menina… Fez das tripas coração e dos fígados vistas grossas, amassou o ressentimento, atacou em massa e defendeu em bolo…
- Traz lá o estupor do gato… assim como assim, o bicho tem sete vidas… Eu já lhe estoirei com uma e por castigo ganhei setenta ratos… De azares nunca os pobres são fartos!
E assim, voltou o Gato do João dos Vais, à vida de gato gatuno, certamente a fazer sandochas de ratos, com pão fresco e saboroso…
São assim, as vidas dos pobres, são assim as vidas dos padeiros, são assim as sete vidas dos gatos. É assim o amor das Avós. (não era nada disto que minha avó contava… mas fez-me bem).
Bigorna (XII6023IX)
(Ilustração de um Amigo - Obrigado)