A Graduação da Saudade
Não é uma novação, que o nosso
conceito sobre a sabedoria dos nossos pais flutue com a nossa própria idade.
Olhando para trás, no tempo, sabemos que isso é luzente, mas no momento, o
barulho das coisas, opacifica-nos a visão.
Enquanto crianças, de tenra
idade, olhamos para os nossos criadores e eles são verdadeiros sábios. Com o
nosso crescimento encetamos a pôr em dúvida essa avaliação e, não raro, iniciamos
um processo inverso, que leva esse conceito a um “O velho está ultrapassado, já
não sabe nada destas realidades”. Na exacta medida em que nos vamos avelhentando,
este conceito inverte a curva e, “os nossos velhotes” ganham, de novo, estatuto
de sábios…
Recordo-me de ter rido, por
dentro, com satisfação, de um episódio que vivi com meu Saudoso Pai. Numa das
visitas que lhe fiz, já ele idoso, pediu-me para lhe ajudar a interpretar uma “missiva”
do fornecedor de energia eléctrica. Uma daquelas cartas que podem querer dizer
tudo, nunca dizem nada, e alvitram, sempre, aumentos das tarifas.
Eu não estava na posse dos meus
óculos de leitura e disse-lhe:
- Sim pai, eu leio isso, mas,
acaso, não terá por aí uns óculos que me empreste, eu já tenho dificuldade em
ler sem óculos.
Meu pai apontou um par de óculos,
lá abandonado a um canto, e comentou:
- Experimenta aqueles. Não sei se
consegues “safar-te” com aqueles, eu já não vejo nada com eles. Acho que já
perderam a graduação!
Achei delicioso. Nunca mais
esqueci aquele momento. Não consegui perceber se brincava com a sua falta de
visão, se lamentava a qualidade de fabrico dos óculos ou se algo mais. A sua
imensa sabedoria já não cabia na minha capacidade de visão.
Hoje, continuo a rir, por dentro.
Não sei se os óculos perderam a graduação ou não.
Hoje, depois de alguns anos, sei
que meu Pai era um sábio e que a graduação das saudades aumenta sempre.
P.s. – Sobre a carta da energia…
sim, as letras ficaram mais pequenas e os preços graduaram.
Bigorna (VII6023IX)
(Ilustração do autor)
Sem comentários:
Enviar um comentário