Era uma vez…
Era uma vez uma pessoa qualquer que, tal como qualquer pessoa, não entendia
muitas coisas. Talvez não entendesse a maioria das coisas. Talvez entendesse
muito poucas coisas.
Era, também, uma vez uma outra pessoa que, tal como muitas outras pessoas,
entendia tudo. Talvez não entendesse um pequeno número de coisas. Certamente,
poucas seriam as coisas que ela não entendia.
Havia, também, um médico, o Senhor Doutor das Doenças quase todas, que
tinha, a custo de muito custo e às custas de todas as outras pessoas, estudado
muito, mesmo muito, mesmo mesmo muito. Mas o Senhor Doutor, médico, não
entendia por que razão as pessoas adoeciam. Sobretudo não entendia por que não
sabiam, elas (as pessoas), fazer tudo, tudo, mas mesmo tudo tudo, para não
ficarem doentes. Mais ainda, não entendia como é que uma vez doentes, as
pessoas, tinham a arrogância de o procurar e de querer que ele, o médico, o
Senhor Doutor das Doenças quase todas, os curasse das doenças que elas tinham.
Ele não entendia. Coisas tão simples, e as pessoas que em vez de não ficarem
doentes, o que deveriam saber como fazer (para não ficarem doentes), e vinham,
por tudo e por tudo, mesmo, mesmo por tudo e por tudo, pedir para serem
curadas.
Também havia as pessoas que não entendiam, nem o médico, Senhor Doutor, nem
as pessoas doentes. O médico, se era médico e sabia curar, por que não entendia
e não curava? E, as pessoas que sabendo como não ficarem doentes, por que
ficavam doentes e pediam ao médico para as curar?
Ainda havia outras pessoas que não entendiam, por que razão, com um tão bom
motivo para ganhar dinheiro, o senhor Doutor não curava as pessoas para que
elas pudessem ganhar dinheiro. Acho que este era o senhor do banco. Ele também
não entendia por que motivo as pessoas não tinham dinheiro e iam ao banco pedir
empréstimos. Também não entendia por que razão as pessoas não tinham dinheiro
para pagar as suas dívidas ao banco, da mesma forma que não entendia que, se as
pessoas não tinham dinheiro por que o não pediam ao banco. Este senhor, do
banco, também dizia não entender que o médico ganhasse dinheiro. Se as pessoas
ficam doentes e não ganham dinheiro, como pode o Senhor Doutor ganhar dinheiro
com elas? Ser médico é só gastar dinheiro para se formar, curar pessoas que não
ganham dinheiro, pessoas que ficam com doenças que só servem para gastar
dinheiro.
Depois havia aquelas pessoas que não entendiam aquelas outras pessoas que
não entendiam certas coisas… e coisas assim. Até havia pessoas que não entendiam
que uma pessoa estudada, mesmo que não entendesse nada, não ganhasse dinheiro.
Também não entendiam que uma pessoa que não fazia nada, nunca tivesse estudado,
e não tivesse dinheiro, levasse a vida a pedinchar e a ganhar dinheiro com
isso. E, ainda por cima, conseguisse enganar melhor os outros do que as pessoas
que tinham estudado muito.
Eu também não entendo muitas coisas.
Como se pode entender por que é que uma pessoa que estuda e trabalha pode
enganar os outros e enriquecer e, uma pessoa que não estudou, não faz outras
coisas… só pede, só pede (como os senhores do banco, por exemplo – embora uns
peçam na rua e outros em escritórios climatizados), possa ganhar mais do que os
senhores que sabem fazer muitas coisas?
Estarei a falar de entender ou de gostar? Não sei, se entendo. Mas eu sou
dos que não entende muitas coisas.
Há dias uma pessoa foi ao banco. O senhor do banco, como essa pessoa não
tinha dinheiro, propôs-se emprestar-lhe dinheiro. Ele emprestou-lhe dinheiro,
por que essa pessoa ia bem vestida e disse que sabia fazer umas cenas e tal…
A pessoa não gostou nada do ar do senhor do banco. Tinha o cabelo todo
apinocado, assim com um ar de trafulha, engravatadinho. Quando ele lhe
emprestou o dinheiro, a pessoa saiu para a rua e viu uma outra pessoa com um ar
tão bom, mesmo muito bom. Com um brilho tão intenso no olhar, com uma pele tão
fina, com uma voz tão doce, a pedir-lhe dinheiro (com o bom aspecto, de pobre,
sem sinais de obesidade, o olhar humilde e banhado de lágrimas, o fato singelo,
quase sem camisa – certamente por a ter dado a alguém com frio), e não teve
coragem de não lhe dar o dinheiro…
Como ficou sem dinheiro, por o ter dado ao pedinte, o Senhor do banco
escreveu-lhe. Foi tão amável! Ele não recebia uma carta desde que pedira namoro
à Maria Gertrudes… que lhe veio, logo, rasgar e esfregar a carta no focinho, no
dia seguinte. A maria gertrudes nem quis saber se ele tinha ou não tinha
sentimentos. A maria Gertrudes sabia que ele não tinha dinheiro e pronto.
Por não ter conseguido pagar a dívida, ficou na rua, sem chão, sem saber o
que fazer e sem entender tantas coisas… afinal como todos os outros que não
entendem muitas coisas. Vieram os senhores do rendimento mínimo e obrigaram-no
a ir ao médico, obrigaram-no a tomar as vacinas que ele já tinha tomado, mas
(por falta do papel onde estavam escritas), por que tivera que limpar o cu ao
único papel onde aquilo estava escrito). Mas são regras do Rendimento mínimo,
quando recebes o rendimento mínimo perdes o direito ao mínimo de dignidade e ganhas
o direito a ir ao médico (quer sejas ou não obrigadinho), que não tinhas se não
fosses um miserável que até recebe o rendimento mínimo. E, depois, depois, sem
ele saber porquê, e eles também não, mandaram-no ir estudar (até um pouco
descontentes), por que ele, não fazendo nada e não entendendo nada, e não tendo
dinheiro teria que ir estudar. Mas lá foi. Parece que, às vezes, também é uma
regra desse tal de rendimento mínimo. É pra ver se entendes.
Quando chegou à frente da Senhora professora de ensinar todas as coisas,
ela disse que não entendia por que motivo uma pessoa que não sabe nada, não faz
nada e não tem dinheiro, vinha estudar.
Ele fez muitas perguntas e a Senhora Professora disse a tudo que era assim
e assim e também e coisa e tal… e que sim senhor…
Foi então que ele perguntou… (a modos que só para os seus botões, mas como
não sabia pensar muito baixinho, a Senhora Professora ouviu):
- Mas, afinal, se há Senhores professores que sabem tudo, de tudo, e tudo e
tudo, por que é que há tantas coisas que as pessoas ainda não sabem?
A Senhora Professora teve um aceso de dúvidas (não sei se dúvidas
existenciais se dívidas morais ou distúrbios finais - que o seu pensamento
sempre leu muito mal as dúvidas dos outros…), e foi, dali direitinha ao Senhor
Doutor médico das doenças quase todas.
Ele ainda lhe disse (à Senhora Professora):
- Boa sorte, Senhora Professora… (mas não adiantou nada)… Ele era apenas um
ignorante.
O Senhor Doutor, médico, das doenças quase todas, não tinha vaga para a
atender e disse-lhe que não entendia por que é que ela, Senhora Professora, não
ensinava às pessoas que os médicos não são para estarem sempre a serem
incomodados, pelas pessoas, só por elas acharem que estavam doentes. E
disse-lhe que quem sabia era ele e que estava muito ocupado a dizer às pessoas
para não virem ao médico por tudo e por tudo. E disse-lhe, ainda, que era por
essas e por outras que os médicos não tinham tempo para atender as pessoas. Era
por esse motivo e por causa das pessoas que tinham a mania de pedirem para
serem curadas.
A Senhora Professora ainda se indignou e disse uma coisa rara de se ouvir,
como é natural nas pessoas que ensinam coisas e sabem de tudo e tudo e dizem
coisas raras de se ouvirem. Ela disse que uma pessoa, se estiver doente, bem
pode morrer à espera de ser curada pelo Senhor Doutor médico. E foi, mais ou
menos, o que veio a acontecer. Apesar de ser natural que as pessoas morram,
mais tarde ou mais cedo, quer estejam doentes, quer não estejam doentes e quer
estejam à espera que o Senhor Doutor médico as cure ou não, a Senhora
Professora morreu.
A Senhora Professora morreu, mas ninguém sabe muito bem se ela está ou não
morta. Mesmo o Senhor Coveiro, que faz as covas no cemitério dos mortos, disse
que não sabia se a podia enterrar por que ela não tinha Atestado de Óbito. Só
quem nunca morreu é que sabe a falte que faz um Atestado de Óbito… Um morto,
mesmo que esteja bem morto, não é ninguém sem um atestado de óbito.
A Senhora Professora ainda ficou em lista de espera para lhe passarem um
Atestado de Óbito, mas o Senhor Doutor médico das doenças quase todas, estava
em greve e, quando se está em greve, se a vida não é importante, muito menos o
é a morte.
Aconteceu, porém, que Senhor Doutor médico das doenças quase todas, acabou
por morrer, atropelado por uma bala disparada por um homem (um daqueles homens
quaisquer, que nunca tinha estado doente, mas pediu um atestado ao Senhor
Doutor médico, para poder usar uma pistola de matar). O homem da pistola,
depois de já ter o atestado para poder matar com a pistola, quando soube que o
Senhor Doutor médico estava em greve, passou-se da marmita e disparou um tiro
para acabar com a vida, em greve, daquele médico. Vá lá um Senhor Doutor médico
imaginar que um homem pode não estar bom da cabeça para usar uma pistola de
matar.
Muitas pessoas, umas daquelas que sabem e entendem de tudo e outras
daquelas que não sabem nada e não entendem nada, gritaram, choraram e rasgaram
as suas incompreensões, que vestiam por dentro, e as suas compreensões que
vestiam por fora. Todas ficaram muito nuas de compreensões e vazias de
incompreensões e disseram em coro:
- Valham-nos os deuses!
Os deuses, para quem não entende, são assim uma coisa, mais ou menos assim,
inventada para quando não se entende nada de coisa alguma. Nem mesmo as pessoas
que sempre entendem todas as coisas entendem certas coisas (como é o caso de
não entenderem por que é que algumas pessoas não entendem certas coisas). Mas,
às vezes, mesmo as pessoas que entendem todas as coisas, também não entendem os
deuses. Foi por isso que alguém, ao entender “essas cenas”, fez um aditamento à
invenção (dos deuses), e acrescentou um excremento (ou seria um acrescento?):
“Os deuses escrevem direito por linhas tortas”. Que cena bué de fatela…
Ora eu que nem sei escrever por linhas direitas… vejam lá…
Victória victória, não se acabou a história… Sabe lá onde isto vai parar.
Bigorna, 12 de Outubro de 2023
(Desenho do Autor) - Conto Públicado no Facebook (Um Conto Por Mês)
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